sábado, 6 de dezembro de 2014

Os arquivos sinistros de Serafins

Trovões despencavam do céu. Iria chover, e muito.

Não era a primeira vez que Pietro invadia a Biblioteca de Serafins pelas tantas da madrugada. Odiava ler de dia e ainda tem o seu trabalho na CCSaR a lhe impedir de freqüentar aquele templo do saber. Entretanto, era a primeira vez que fazia isso com uma dúvida tão intrigante quanto aquela que, se amedrontava a seus companheiros de caserna, também excitava sua curiosidade.

Mas o que será que Maria viu na Fazenda do Barão? - questionava-se ininterruptamente Pietro.

A solidão sugerida pela noite e as repentinas alumiações geradas pelas trovoadas tornavam o local ainda mais estranho. Imagens barrocas de pedra sabão tanto na fachada quanto no interior contrastavam com o estilo modernista do prédio, construído durante a segunda metade da década de 20 especialmente para abrigar a biblioteca e o arquivo municipal, acervos que o Caçador conhecia muito bem. Se o prédio era novo e imponente, a estante, as caixas e os livros encontravam-se em péssimo estado entre fios expostos, paredes descascadas e teias de aranha, denotando claro descuido e gerando a sensação de se estar em um mausoléu barroco onde coisas mortas repousavam.

Era ali que se encontravam alguns dos mais preciosos livros e relatos arquivísticos sobre os mitos brasileiros. 

Pietro buscava por dados que pudesse esclarecer suas dúvidas. Seus amigos o achavam excêntrico, mas já salvara a vida de alguns deles com seu conhecimento. E sabia que o horror que estavam enfrentando envolvia cães sinistros, pombos malhados mortos, monstros que bebiam sangue e rituais satânicos:

A questão naquele momento era descobrir quais coisas malditas seriam aquelas!

Enquanto empreendia seu árduo trabalho de pesquisa, a tempestade que se anunciara quando entrou na Biblioteca despencou sobre o interior das Minas Gerais e, conseqüentemente, sobre Serafins. Seus estudos avançaram por vários livros e documentos variados, provenientes de compilações de estórias e arquivos confusos, paroquiais ou judiciários, sobre mortes nas quais pessoas eram encontradas sem nenhuma gota de sangue e atacadas pelos temíveis Cães da Meia Noite ou hordas estranhas de pombos malhados. Histórias de homens simples convidados para jantar na Casa do Barão, a residência mais antiga e rústica da cidade. Nunca mais retornaram, reclamações estas obviamente ignoradas pelas autoridades locais por se referirem a um dos poderosos latifundiários, típico “Coronel” do interior.

Os relatos mais antigos datavam de 1840, quase um século antes, e alguns eram ilegíveis. Pietro já tinha alguma ideia do que estavam enfrentando, mas o barulho da chuva tirou um pouco de sua concentração, situação que se agravara pelo estranho barulho de muitas asas se batendo. Mas nada que detivesse sua exótica pesquisa, chegando, enfim, a temíveis conclusões.

Os pombos malhados não atuavam por forças deste mundo, mas por um poder do Além capaz de comandá-los conforme sua vontade, inclusive forçando-os a lutar até a morte contra qualquer opositor de seu sinistro mestre. Tal mestre já fora humano um dia, mas certamente não era mais: tornou-se noutra coisa, com a velocidade de uma onça e a força de dez homens. Entretanto, para caminhar entre as criaturas de Deus, ele necessitava beber sangue, sempre o suficiente para tornar o horror de sua existência ainda mais inaceitável aos homens.

Mas não era qualquer sangue que estes monstros poderiam apreciar. Era difícil compreender o padrão ou ligação, mas eles não bebiam de qualquer homem ou mulher. Talvez alguns lhes fossem restritos pelo Criador por serem santos demais ou, em interpretações fora do âmbito teológico, de sangue menos saboroso. De qualquer forma, eram estes horrores, seletivos com relação às suas vitimas.

Mas que destino terrível era ser uma vitima destes seres! Não necessariamente morriam ao serem sugados - o que só ocorria em acessos não incomuns de grande fome ou ira por parte do monstro - mas talvez fosse este um destino mais misericordioso. Enquanto alimentam seus faustosos senhores, sua vida esvai-se de seus corpos, tornando-os fantasmas ambulantes. O amor, a alegria, a dor, a tristeza, a ambição, o desejo sexual... os sentimentos mais poderosos que podem mover um homem ou mulher se esvaem com o sangue perdido, tornando a vitima desnutrida, pálida e emocionalmente morta. As vítimas, por outro lado, não oferecem resistência entregando-se à servidão e desfrutando viciantes e inexplicáveis momentos de excitação e atração ao contemplarem seus senhores, ouvirem sua voz e sentirem seu cheiro. Uma espécie de dominação sexual pervertida, mas de origem não natural, com implicações sociais diretas e certamente malignas.

Não era exagero, portanto, dizer que tais seres fossem parasitas, sustentados cruel e desumanamente por pobres coitados que, em troca, entregam de bom grado suas vidas a eles. Os nomes da monstruosidade variam, e as fontes chamam-nos de nosferatusanguini homini, incubus, sucubu, vampiro. As mesmas fontes apontam inequivocamente para o fato de que se tratava de uma linhagem deturpada desenvolvida Colônia Portuguesa no século XVI, estando longe de ser bem definida de acordo com o os documentos que Pietro tinha a mão. E assombravam ao jovem pesquisador quando ele comparou, nas lendas compiladas, o nome e o possível tipo de vitima da criatura que provinha da fazenda do Barão, o possível oponente que perseguiam.

Mas era possível, de acordo com a pesquisa empreendida pelo jovem Caçador, enfrentar tais horrores. A luz do sol os destrói totalmente com seus raios dourados e purificadores enviados pelo Criador, posto que agia como o juízo final sobre sua existência execrável. As coisas sagradas como água benta e o crucifixo também os reprimem, pois não suportam a santidade emanada por estes paramentos. De forma semelhante, os corpos mortos são altamente vulneráveis a armas extraídas diretamente de material vivo - ou que já fora vivo - como madeiras e ossos que, ao contrário das armas comuns criadas pelo homem - as quais somente atordoam e causam mínima dor - podem feri-los e até destruí-los. Por fim, a alimentação bizarra de tais criaturas é o que ainda as mantém entre os vivos, portanto certas especiarias, legumes, grãos e raízes causam-lhe uma dor excruciante por lembrar ao corpo e a alma da criatura o horror de sua existência, sua condição inaceitável dentre os vivos. Pietro encontrou várias versões para esta alergia de acordo com a região do país ou até mesmo do mundo onde fosse consumida, como por exemplo, alho, arroz e pimenta. Todavia, parecia que, ao menos na colônia, o remédio infalível contra tais seres foi a farinha de mandioca.

Quanto aos Cães da Meia Noite, os mitos eram abundantes. Também chamado de cão do inferno, pois de lá são oriundos, criados por demônios e outros espíritos malignos do Além pra atuarem como seus “cães de guarda” ou “cães de caça”. Somente seu bafo fervilhante é mais mortal e medonho que seu latido, o qual Pietro conhecia muito bem. Como a origem destas abjetas criaturas é a noite e a escuridão, eles também são vulneráveis à luz do sol, tanto quanto a paramentos sagrados.

Não era difícil imaginar, acreditava o Caçador, que os sacrifícios de animais realizados por Mata Bode trouxeram estes monstros caninos para o Mundo dos Homens. Mas o pior:

- Do que se tratam os rituais satânicos aos quais Mata Bode submeteu Maria, já que estes de forma alguma podem estar relacionados aos ritos blasfemos de conjuração de Cães da Meia Noite? - perguntava para si mesmo.

Naquele momento, o rapaz recebeu o maior susto de toda a sua vida.

Inúmeros pombos malhados chocaram-se violentamente contra as janelas gloriosas e antecedidas por imagens barrocas da fachada do prédio. Somente um milagre explicaria o fato de seu coração não ter paralisado diante de cena tão assombrosa.

Após recuperar o fôlego e estabilizar sua respiração, o Caçador anotou tudo o que descobriu em seu caderninho, sobretudo tendo o cuidado com as possíveis fraquezas das monstruosidades. Retornou então para o quartel da Companhia onde servia.

Trecho do livro Sombras da Revolução.



A serpente dos bordéis

A morena de curvas provocantes caminhava insinuante. Remexia hipnoticamente seus quadris perfeitamente desenhados, dentro de um corpete vermelho de detalhes pretos. As botas de salto alto eram pretas e fetichistas. Seus cabelos negros cacheados contrastavam com os olhos sombreados, pesada maquiagem do rosto e batom vermelho sangue brilhoso nos lábios carnudos. Uma pintinha repousava sobre a bochecha, complementando o visual de mulher da vida que lhe era próprio.

Ainda que a casa de tolerância emanasse luz vermelha forte, impedindo ver com clareza, não tardaria para que uma beldade como ela obtivesse seus primeiros “clientes”. Ainda assim, eram solenemente ignorados os pedido dos sertanejos que frequentavam aquele prostíbulo à beira de estrada. 

Era o terceiro bordel visitado naquela noite e a conversa, sempre a mesma:

- Ai estou com tanto medo deste tal de Mata Bode! - dizia ela para seus clientes em potencial, num tom de donzela indefesa.

As respostas, por outro lado, também não mudavam de formato, sendo sempre algo entre - Fique tranqüila que aqui você tem um macho pra te defender -  e  - Pois é, tomara que a CCSaR pegue logo este bandido!.

Ela já estava desistindo. Parecia que não encontraria nenhuma pista. Bordéis e espeluncas são excelentes locais para colher informações sobre bandidos, ainda mais um tão peculiar e violento quanto Mata Bode. Mas provavelmente ele ficara “entocado” durante o dia que passou, já que ninguém viu ou soube de nada.

Só que a noite ainda reservava surpresas para a estonteante Lucíola, a bela prostituta

- Não precisa ter medo - dizia um jovem que a mantinha sentada em seu colo - Eu o vi esta manhã, próximo a Fazenda do Boi Preto: ele pegou uma moça branquinha.

 - Virgem Santíssima! - exclamou Lucíola, fingindo perfeito espanto

Foi um horror aquilo! - prosseguia o jovem - O fedor de carne podre vinha de longe, não sei se dele, se da carroça dele, ou de ambos, já que a carroça estava totalmente vazia.

 - E o que o monstro fez com ela?

Ele a amarrou e a colocou na carroçaSabe lá Deus que maldades sofreu ou sofrerá nas mãos dele esta noite.

O olhar dela era especulativo, mas acobertado pelo semblante de inocência imperceptivelmente fingida.

- Mas vamos ficar falando disso, ou fazer um ‘amôzinho’ gostoso? – perguntava, lascivo, o jovem.

- Claro que prefiro um ‘amôzinho’, querido - respondeu ela.

Ambos foram para o quarto. Em situações assim, Lucíola somente fazia sexo e deixava seu cliente vivo. 

Mas naquele dia seria diferente. Ela tinha pressa. Não haveria sexo. Mas haveria morte pela covardia do jovem em ver o Mata Bode sequestrar uma garota e não fazer nada quanto a isto...


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Lamento de Tupã: Cenário sobre Mitologia Indígena


Lamento de Tupã foi um cenário que explora os mitos dos povos indígenas como inspiração para um universo novo (clique aqui para saber mais). Isto foi completamente abandonado. Não há nenhum consultor dos povos originários neste blog, e usamos enorme dose de licença literária. Desta forma, falamos aqui em mitologia brasileira, ou seja, sincrética e reelaborada, não dos povos originários.

Nele, Tupã teria sido tomado por profunda amargura diante da maldade dos homens perante eles próprios e a Criação. Estava farto dos crimes tanto das Nações (os “índios”) quanto dos Caraíbas (“homens brancos”) e Abáunas (“homens negros”).

Tupã então desapareceu entre as estrelas. Diante de seu Lamento, os Yibiás – espíritos, entidades, gênios e monstros da mitologia indígena – trifurcaram-se em postura:

Uma parte decidiu castigar os homens, seja por odiá-los, seja pelos seus crimes, seja para despertar-lhes a consciência através do sofrimento.

A outra parte estava decidida a proteger os homens e guia-los, seja com sabedoria, seja com sutis manipulações, para atos de virtude e heroísmo que resgatem a fé de Tupã.

E a outra parte só deseja ver o circo pegar fogo...


Utilizando o Cenário 
Neste cenário os jogadores interpretarão personagens que tiveram seu Mb’á  (destino) ligado ao dilema dos Yibás. Cônscios da gravidade da Era das Incertezas, eles tentarão encontrar seu caminho em Pindorá, tentando convencer aos espíritos (e conseqüentemente a Tupã) de que os homens ainda tem valor. São chamados de Abaietês, ou seja, amigos, protetores dos homens. A cada jogo, eles vivenciarão uma jornada. Enfrentarão espíritos malignos e Ibiriunas (monstros das lendas tupis). Descobrirão relíquias antigas. Protegerão espaços sagrados. Descobrirão segredos há muito soterrados pelas raízes do Tempo.

Entretanto, a jornada dos seus personagens não se restringe a matar monstros e acumular poder. Nem mesmo trata-se de uma jornada física A esperança para os homens está no valor de suas atitudes. Somente a bravura, sabedoria, abnegação e perspicácia que levaram homens e mulheres de tempos imemoriais a serem os Heróis das Nações podem aplacar a tristeza de Tupã. As batalhas, mistérios e desafios enfrentados pelos personagens apenas farão sentido caso seu sacrifício se volte para a proteger dos fracos, a honradez dos gestos, a pureza da terra e o cultivo dos valores de respeito e harmonia.

Observe que os Abaietês (personagens jogadores) não são santos ou escoteiros perfeitos. Seus personagens podem e devem ter defeitos, e a busca por superá-los é parte da jornada. O que os diferencia dos demais homens, mulheres, espíritos e criaturas é a consciência da decadência das relações dos homens entre si e com a Terra. Esta consciência pode não se dar através do pleno conhecimento dos Mitos: tentar salvar um rio, garantir os direitos de uma reserva indígena ou impedir que uma mulher seja estuprada já demonstra a centelha de ser Abaietê.

Lamento de Tupã é, desta forma, uma brincadeira de duplo resgate. Tentamos trazer de volta alguns mitos e costumes dos povos que tanto temos desprezado há cinco séculos, e também resgatar os valores que não somente são o estofo dos verdadeiros heróis, mas a essência de se viver em paz e harmonia entre nós mesmos e com as maravilhas da natureza a nossa volta.


Sistemas
Em Savage Worlds, as aventuras icônicas (p. 177) envolverão tramas e descobertas envolvendo o Lamento de Tupã: artefatos disputados, lugares sagrados em ameaça, Yibiás cujos planos envolvem pessoas ou recursos importantes. Trata-se de uma campanha que ficará entre Exploração e Interpretação (p. 172), mas observe que nem sempre as Explorações serão viagensAlto Xingu ou às profundezas do Amazonas: os Yibiás estão há muito adaptados às cidades, que foram construídas ao redor ou mesmo sobre rios, árvores e templos sagrados – alguns deles, ainda guardados por Pajés ou criaturas poderosas. As aventuras tendem a ser mais Roteirizadas (p. 177), mas você pode intercalar com eventos traumáticos e imprevisíveis de Aventuras Situacionais.

Em Gurps, Lamento de Tupã será uma campanha de “Enigmas e Mistérios”, mas com combates ferozes. A Magia existe, mas o custo em Antecedentes Incomuns para ser Mago (Pajé) é de 50 pontos (ver adiante). O mesmo custo deve ser pago para que o personagem seja um Yibiá menor.

Já Storyteller, este cenário aproxima-se de Lobisomem; o Apocalipse. É recomendado o uso deste livro.

Ilustração de Eduardo Ferigato (divulgação de seu trabalho aqui), cores de Ricardo Riamonde.


Personagens
Em Savage Worlds, os personagens jogadores serão do Estágio Novato. As Perícias mais comuns são: arremessar, atirar, conhecimento, curar, dirigir, escalar, investigar, lutar, nadar, perceber, rastrear e sobrevivência. Não há nenhuma complicação ou vantagem em especial que seja mais comum, sendo todas possíveis de serem encontradas entre Yibiás e Homens que vagam pela Terra.

Em Gurps, a pontuação inicial dos personagens será Heróica (150, ponto, p. 487). As Vantagens mais comuns são: Abençoado, Antecedentes Incomuns, Destemor, Destino, Duro de Matar, Empatia com Animais, Empatia com Plantas, Identidade Alternativa, Intuição, Obstinado, Oráculo, Propósito Maior, Reflexos em Combate, Senso de Direção e Sentidos Aguçados. As perícias mais encontradas: Acrobacia, Adestramento de Animais, Antropologia, Arco, Arma de Arremesso (dardo, faca, lança, machadinha), armadilhas, faca, lança, armas de fogo, armeiro, arqueologia, arremesso, biologia, briga, camuflagem, carregamento, cavalgar, condução, conhecimento de ervas, conhecimento do Terreno, contrabando, corrida, dança, desenho de símbolos, diplomacia, farmácia, furtividade, geografia, história, instrumento musical, intimidação, joalheiro, Laço, liderança, manha, medicina, medicina alternativa, meditação, navegação, paraquedismo, pescaria, pesquisa, pilotagem, política, primeiros socorros, rastreamento, rede, remo/vela, ritual religioso, sacar rápido, salto, sobrevivência, sobrevivência urbana, , soldado, sonhos, trato social, uka uka (arte marcial indígena, tratar como Luta greco-romana com exceção das cotoveladas e joelhadas, tratadas como socos e chutes de caratê) venefício, veterinária, voo e zarabatana.

Para Storyteller, use a pontuação básica para humanos (6/4/3; 11/7/4; 5 de Antecedentes, 7 de Virtudes e 21 pontos de Bônus). Os Yibiás terão outra pontuação 7/5/3; 13/9/5; 5 de Antecedentes, 7 de Virtudes, 3 pontos para Dons e 15 pontos de bônus. De preferência à Ficha de Lobisomem: o Apocalipse (o Guia dos Jogadores dele também é útil). As Habilidades Prontidão, Esportes, Briga, Esquiva, Empatia, Intimidação, Manha, Empatia com Animais, Condução, Armas de Fogo, Armas brancas, Concertos, Furtividade, Sobrevivência, Enigmas, Investigação, Linguística, Ocultismo, Política e Ciências são muito utilizáveis. Os Antecedentes Ancestrais, Fetiche, Ritos e Totem são condizentes com o cenário.

Yibiás e seus poderes
Os Yibiás são espíritos, mortos vivos e seres fantásticos dos mitos indígenas. Existentes desde a Criação, cuidavam dos fundamentos do Mundo, sendo reverenciados, temidos e/ou respeitados pelos Pajés que compreendiam seu papel no universo.

A chegada dos caraíbas afetou muito a existência destes seres poderosos. Alguns retornaram ao Ikurui, mundo espiritual fonte da aña, enquanto outros tiveram que readaptar seus hábitos e domínios às cidades dos novos habitantes da terra, ao passo que uns poucos ainda se agarram ferozmente aos refúgios onde viveram por séculos, tentando manter as coisas como estão.

Os mitos indígenas não apresentam fronteiras rígidas quanto a “tipos”, mas, em termos de jogo, Narradores/Mestres e jogadores podem criar seus Yibiás a partir dos seguintes modelos:

Ancestrais: são as almas de Heróis, Anciões e Pajés das Nações. São tratados respeitosamente pelo título de Amyipagûana (antepassado). São cultuados pelo seu valor, e suas histórias servem de exemplos para tribos e aldeias. Observe que nem todos os Ancestrais tinha coração nobre: alguns deles foram vilões da pior espécie. Ainda assim, seu destaque os faz dignos de reverência, ainda que cuidadosa. Os Cultos aos Antepassados são comuns e feitos em cemitérios, rios, pântanos ou em partes da aldeia. Seus poderes normalmente envolvem influência, força, resistência, bênçãos, maldições e habilidades sensitivas.

Anhangás: os Anhangás são almas penadas e espíritos dos que já se foram.  Num linguajar grosseiro, típico dos Kari, seriam mortos-vivos. Por terem violado de alguma forma o Ciclo da Vida são, portanto, temidos, pouco tendo de virtuoso a oferecer aos vivos. Seus poderes normalmente envolvem formas, visões e viagens astrais, medo, maldições, dano amaldiçoado, regeneração e imunidades a danos comuns.

: São os espíritos das espécies animais, guardiões e senhores de seus segredos. Um não representa apenas as características físicas dos animais, mas, e principalmente, seu Mb’á (Propósito) na Criação. Desta forma, o Ió-morcego tem grande poder sobre a noite, as trevas e o sangue, enquanto um Ió-papagaio é o senhor das mensagens e da comunicação, ao passo que a Ió-onça é a dona de tudo que se refere à caça. Seus poderes envolvem habilidades sensitivas, barreiras, visões e formas astrais, mudança limitada para formas de animais, sentidos aguçados, e controle sobre elementos da natureza e do corpo humano.

Móañás/Raúañás: são espíritos imprevisíveis, trapaceiros, brincalhões, mestres da ilusão e da mágica. Seus nomes podem significar tornar (mó) ou falso (raú). Estes Yibiás tem apreço pelas brincadeiras, pela invisibilidade e pelas fantasias, e ligam-se especialmente a plantas e flores de cores variadas e fortes, ou à caminhos escuros evitados pelos caçadores. Alguns deles se parecem mais com crianças dóceis e brincalhonas. Outros são trapaceiros e sedutores perigosos, que deleitam-se em desviar os homens de seu Mb’á  ou confundi-los. Exemplos são a Flor do Mato (menininha com imensos poderes de ilusão, que vive em vitórias régias e sempre deseja alguém para brincar com ela), os Marajigoana (demônios metamorfos que copiam aparências humanas para roubar o lugar dos homens na sociedade) e o Kalumirí (indiozinho que anda pela mata com chapéu e cigarro de palha, roubando conhecimento ou poderes mágicos através de barganhas e enganações). Seus poderes envolvem disfarces mágicos, ilusões, alucinações e pactos.

Kaapuã: são os senhores da mata e dos animais. Territorialistas, protegem as florestas de incautos que atacam fêmeas prenhas, caçam além da necessidade, sujam e incendeiam as matas. No passado, foram os únicos a enfrentarem diretamente os Caraíbas, gerando-lhes terror e lendas como as do Curupira, Caipora, e Kurupy, entre outras. Entretanto, as coisas infelizmente tem mudado, e muitos deles simplesmente decidiram partir de volta para o Ikuruy. Seus poderes normalmente são ligados a força, camuflagem, agilidade, armas mágicas, ilusões limitadas, cura, maldições, rastreamento, afinidade (mas não controle) sobre animais e plantas.

Mbai: são espíritos ligados ao destino, à sorte e aos valores, positivos e negativos, do homem. A mítica Anabanéri, que realiza um desejo do homem ao contemplar seu Mb’á, o temível Mbai-ab, espirito sinistro do medo e da má sorte, e o Andira, “senhor dos agouros tristes”, são exemplos de Mbai. Seus poderes envolvem bênçãos, maldições, destino, controle e probabilidade.

Votú: são espíritos que representam a vida no mundo físico, e são mais variados ainda que os . Existem Votú da água, de plantas específicas, das serras, de rios, do vento, de cipós, da tempestade, do fogo, e dos raios solares. Seus poderes são grandiosas formas de controle da natureza.

Ygupiaras: guardiãs dos lagos, rios e orlas, são sereias vaidosas, de gostos extremamente exigentes. Seu poder para a sedução é lendário, capaz de por em transe quem houve sua voz. São também capazes de comandar as plantas aquáticas e os peixes. Umas poucas são dóceis e generosas. Mas jamais conte com isso, pois a crueldade e o capricho são suas principais marcas: elas colecionam relíquias, aprisionam homens (às vezes devorando-os ou bebendo-lhes o sangue), e nutrem grande apetite pela adulação. Aquelas que decidiram vagar entre os Kari vivem próximas a orlas e praias, e algumas desenvolveram caprichos particularmente pervertidos. Alguns Ygupiaras são homens, com enorme poder para poesia e sedução, mas estes são raríssimos. Seus poderes envolvem empatia sobrenatural, controle de emoções, fascínio, carisma, artes (como canto no sentido de controle de voz, gritos que causam dano, etc.) e mudanças limitadas de forma.

Mó-ês: são espíritos com grande domínio sobre o aña e conhecimento das feras das matas, trocando-as por formas humanas. No vocabulário grosseiro dos Kari, são metamorfos. Também são capazes de comunicar-se, ou mesmo comandar, o animal cuja forma é capaz de assumir. Os Mó-ês mais comuns são o Abauarê (jacaré), o Móyube (sucurí), o Kanaíma (onça) e o Ukiri (homem porco-do-mato). Alguns mitos relatam homens e mulheres tornando-se Mó-ês como frutos de maldições ou mudanças mágicas, e há Pajés capazes de imitar este dom, ainda que de forma limitada e por curto espaço de tempo. Seus poderes envolvem mudanças para formas parciais ou totais de um animal, afinidade e controle sobre raças de animais, garras, presas, sentidos aguçados, força, agilidade e regeneração.

Jurupari: na verdade, não são especificamente Yibiás. Emissários de Tau, a escuridão pré-existente, representam o vazio e o nada. Tem a forma de sombras sinistras, de tamanhos variáveis: alguns são do tamanho de gafanhotos, outros poderiam cobrir florestas inteiras (mas estes, decerto, estão adormecidos). Os mais antigos e poderosos entre eles são capazes de invadir sonhos, produzir pesadelos e impor um silêncio desesperador. Segundo algumas versões, o primeiro Jurupari teria sido um filho amado de Ceucí e o criador das tradições de honra e de vida fraterna, corrompido  por Tau. Representaria, desta forma, a eterna sedução do bem pelo mal. Noutras versões, bem menos aceitas, sua queda se deu por trocar as tradições matriarcais pelas patriarcais: a aceitação de tais normais pelos homens teria magoado Nhanderuvuçu por eras. Seus poderes envolvem escuridão, sombras, pesadelos, destruição, esquecimento, maldições, sugestão e medo, mas, pelo seu papel destrutivo e a valores como amizade e trabalho em equipe, não devem ser utilizados como personagens jogadores.

Os Primeiros: as vezes chamados de Añetês (elevados), Os Primeiros recebem este título por terem sido os espíritos que participaram diretamente da Criação e os percussores no conhecimento sobre o aña. São poderosíssimos, e sua idade pode anteceder ao Tempo. Aparentemente, são os únicos com acesso direto e constante a Tupã, e os seres mais poderosos do universo. Os fundamentos da existência foram lançados, ou são mantidos, por meio deles. São incrivelmente poderosos e não podem ser usados pelos jogadores. Os Narradores só devem usar Os Primeiros em aventuras épicas ou tramas muito, muito especiais.

Em Sagave Worlds, os Yibiás são criados a partir do Antecedente Arcano: Super Poderes (p.145). Veja a seguir as Manifestações mais comuns neste cenário:

  • ·         Aña: envolve o controle e manipulação da essência do universo, matéria da criação.

  • ·     Ciclo: envolve os aspectos da vida, morte e vida pós-morte, mas também o nascer/viver, degenerar/renegerar.

  • ·         Tempos: neblina, tempestade, vento, chuva, geada.

  •   Espiritual: envolve a compreensão das outras dimensões de existência, seu habitantes, materialidade/imaterialidade e formas de ir e vir dos mundos espirituais.

  • ·         Estrelas/Lua: são as formas de entendimento da luz e da proteção, mas também envolvem sentimentos como o amor (fraternal e sexual, num sentido romântico).

  • ·         Fogo: visto também como uma força destruidora e, não raro, ligada ao mal, ao descontrole e à morte.

  • ·         Mata: envolve poderes ligados a plantas ou versões de habilidades de animais.

  • ·         Mb’á: controle do destino, da probabilidade, do azar e da sorte, das bênçãos e maldições.

  • ·         Veneno: autoexplicativo, mas sempre ligado às raras e exuberantes plantas de Pindorá.

  • ·         Relâmpago: veja eletricidade (p.148). Também se relaciona com poder e autoridade.

  • ·         Sol: representa o calor nos sentido positivo. Também é ligado à proteção, banimentos, exorcismos, curas, bem como a coisas sagradas.

  • ·         Som: veja p. 150 do livro básico. Também se relaciona com paixão, medo e fascínio.

  • ·         Sombras: ver Trevas, p.149 do Livro Básico.

  • ·         Tradição: representa a sabedoria antiga, os tabus, o conhecimento e o poder das Nações.

Em Gurps, o custo para ser um Yibiá é de 50 pontos, devido ao Antecedente Incomum. Fica a eles aberta a possibilidade de compra das Vantagens Exóticas e Sobrenaturais que deseje. Você pode , inclusive, usar as Manifestações acima descritas para Savage World como norte para a explicação e estética destes poderes.

Em Storyteller: use as Qualidades e Defeitos de Lobisomem: o Apocalipse para os personagens deste cenário, bem como os Dons (7 pontos/nível, limitados ao nível 1 no momento da criação de personagem), para emular os poderes dos Yibiás.


Heróis, personagens e histórias
Além dos Yibiás, os personagens humanos são fundamentais neste cenário, sendo possível, inclusive, fazer uma campanha de suspense ou investigação só com eles. Humanos também podem proporcionar excelentes Vilões.

Partindo da Teoria dos Cenários Marcantes, vejamos alguns personagens possíveis:

Desafio dos Bandeirantes”: os personagens são Caraíbas ou Abáunas recém chegados a Pindorá. Obviamente, personagens das Nações (índios) podem mesclar-se a eles, e é possível, inclusive, o Segundo Lamento de Tupã (que se inicia neste época) mostrando apenas um dos lados (dos índios ou dos invasores). Guerreiros indígenas e Pajés misturam-se a bandeirantes, jesuítas, pesquisadores europeus e outros exploradores. É possível tanto uma abordagem mais “investigação do oculto” quanto uma mais fantástica, até mesmo do tipo Inuyasha, com aventureiros humanos em meio a seres fantásticos e poderosos, porém permeados de mistério inquietante num contexto histórico específico.

Brasil Imperial: momento de consolidação do Estado brasileiro e de expansão de cidades e da ciência europeizada. Foi também o momento com maior número de guerras em nossa história. Acadêmicos do mundo todo vinham pesquisar nossa cultura, flora e fauna, e isso pode abrir muitas oportunidades de aventuras. Guerreiros indígenas, policiais, bandoleiros e soldados brasileiros são boas pedidas. Aqui temos um momento dramático para os Yibiás, que tem de se adaptar às cidades e a nova cultura por ficarem sem espaço devido ao avanço da “civilização”. E é possível casar o Lamento de Tupã com abordagens mais fantásticas como “Brasil Steampunk”!

Era Vargas: Ou em qualquer período da história republicana do Brasil os Yibiás que restaram já se mesclaram totalmente à realidade das grandes cidades. Personagens comuns são exploradores, pilotos, militares e ex-militares, mercenários, detetives e repórteres “caçadores do oculto” bm como pesquisadores como antropólogos e arqueólogos. E, se você for ousado, é possível até explorar elementos da temática Supers a partir disso tudo...


Pajelança
Claro, não poderíamos esquecer a figura do Pajé!

Em Savage Worlds, use as regras de Antecedente Arcano (Magia), com a diferença de que os pontos de Poder são recuperados somente através de rituais de cerca de uma ou duas horas (com oferendas, cantigas, danças, pinturas, meditação etc). Lance um dado igual ao nível do personagem na Perícia Arcana: o resultado será a quantidade de Pontos de Poder recuperados. A critério do narrador, mesmo personagens não arcanos podem acumular Pontos de Poder (máximo 10), que serão pelo Conjurador (ao invés de seus próprios pontos de Poder) para lançar sobre aquele personagem efeitos benéficos.

Em Gurps um Pajé é criado como um Mago. As escolas mais adequadas são: ar, comunicação e empatia, cura, fogo, luz e trevas, necromancia, portal, proteção e aviso, reconhecimento, terra e metamágica. Os itens mágicos são comuns. As Vantagens e Desvantagens relacionadas a magia podem dar um toque a mais em alguns personagens, mas não exagere. O Nível de Mana é baixo com exceção de lugares sagrados como cachoeiras, matas quase virgens, árvores raras ou ancestrais, templos em cavernas, etc. Tal limitação não se aplica ao uso de itens mágicos.

Em Storyteller, use as regras de mágica vulgar de Mago: A Ascensão. Caso não disponha deste material, substitua por Taumaturgia (Espiritual e Controle do Clima principalmente), Animalismo, Metamorfose, Tenebrosidade e Necromancia, comprados com Pontos de Bônus (7 por nível).


Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até al...