São Paulo, 1949.
Isabela arfou quando se sentou na cadeira. Levou uma das mãos ao ombro direito, enfaixado como também seu dorso nu. Depois, se voltou para a máquina de escrever diante de si, pondo-se a datilografar:
Caro professor Strauss:Escrevo estas linhas a fim de concluir meu relato sobre a experiência na Caverna das Amendoeiras. Considerando suas constantes advertências acerca do que considera ser excessiva credulidade minha, ressalto, com veemência, que as letras a seguir são a tradução mais direta que pude expressar de tudo que eu mesma ví e ouvi.”
A mulher pegou o caro cigarro parisiense sobre a mesa. Levou-o aos lábios e tragou saborosamente. Prosseguiu:
Os desdobramentos daquele inusitado trabalho de campo me trouxeram, para minha surpresa, da selva matogressense à São Paulo. Imagino que o senhor acompanhou, pelos jornais e pelo rádio, a catástrofe que se abateu sobre esta metrópole onde viveu e lecionou. Adianto-lhe, por esta razão, que, com exceção de escoriações já medicadas, estou bem.
Ela relaxou na cadeira, suspirando mais uma vez devido ao ombro direito. Tragou de novo o cigarro e se levantou em seguida, lançando um hobby de seda sobre seu corpo tatuado. Caminhou na direção da varanda do requintado quarto de hotel onde estava hospedada, contemplando a cidade: até onde a vista alcançava, via carros quebrados, bondes batidos, postes caídos e quarteirões inteiros sem energia elétrica.
A maior cidade dos homens agonizava debaixo de lama, lixo e água. Isabela deu outra tragada no cigarro, buscando alivio para o ombro e palavras convincentes para o que havia de relatar.
…
O flash da máquina fotográfica iluminou a igreja e o corpo do padre, ao chão e sob os pés do rapaz magro de jaleco branco:
- Parece ter havido luta – relatava o jovem ao senhor de bigode de morsa e casacão bege parado do seu lado – há marcas de tiros no teto. O assassino trespassou a vítima com objeto perfurante que parece ser uma lança, mas nenhum tiro o atingiu. As senhoras que vieram rezar ficaram chocadas ao chegarem e verem a cena. Não há suspeitos: as demais pessoas interrogadas só tinham elogios ao pároco, e não mencionaram nenhum desafeto.
- ‘Porca miséria’! – exclamou o velho, metendo a mão por baixo do chapéu para coçar a própria cabeça – E os documentos dele?
- Mão há nada na casa paroquial sobre o tal padre. Documentos pessoais, fotos de família, nada.
- O assassino pode ter levado?
- Não há marcas de arrombamento, nem de que as gavetas foram mexidas. Também não foi levado nada de valor.
- Então o padre não tem documentos, nem nada que o identifique?
- Bem, ele é famoso no bairro...todos gostam do Padre Honório.
- Ok, mas...nada sobre ele em forma de documentos?
- Não, senhor.
- ‘Porca miséria!’
- O que faremos senhor?
Gulliver, o velho Inspetor, olhou em volta enquanto coçava de novo a cabeça. Depois, estalou o dedo, chamando o homem que tirava fotos do local do crime.
- Recolha tudo. Por hora, lacre o local e voltemos para a Inspetoria.
Os policiais terminaram o serviço e entraram na viatura, deixando uma fita zebrada nos portões da igreja. Foram embora sem notar o homem que, abrigado debaixo de uma marquise do outro lado da rua junto a um vaso de barro, protegia-se do frio com uma manta de pinturas tribais. O chapéu de palha com abas largas impediria visão de seu rosto, mas as chamas do cachimbo que aquele homem acendeu revelaram o semblante preocupado em seu rosto.
…
Francisco acordou com o cheiro do lixo invadindo seu nariz. Se levantou, recostando o ombro numa das parede daquele beco escuro enquanto tapava os olhos diante das luzes de neon do outro lado da rua.
Seu estômago roncava. A lufada do vento noturno, que soprou pelo beco, o fez perceber estar sem camisa por baixo do roto paletó branco que vestia. Apalpando o próprio peito, sentiu uma cicatriz cortando seu lado esquerdo.
O estômago roncou de novo.
– O que aconteceu comigo? - perguntava-se ele.
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