sexta-feira, 21 de julho de 2017

O ANCESTRAL QUE ROUBOU O FOGO - o Retorno de Mahyra (Mitologia Indígena em Lamento de Tupã, Ep. 02, Tem. 01)

- Porque voltou até aqui? – perguntou a grande Arara Vermelha ao homem belo, forte e imponente, logo após pousar ao galho chamuscado da única árvore que restara de pé.

- Foi onde tudo começou. Sempre venho aqui antes de tomar uma decisão – respondeu Mahyra, cabisbaixo, naquele campo reduzido às cinzas e carvão.

- Vai mesmo em busca dele? – perguntou a grande Arara Vermelha.

Aquelas perguntas interrompiam lembranças. Com um pé sobre uma pedra, ele lembrava-se da batalha que travou em tempos tão distantes contra Ió-Uurubu, a fim de tomar-lhe o Segredo do Fogo e sobreviver ao incêndio que destruiu o Primeiro Paraíso.

- Antes, preciso retornar ao Mundo dos Homens – disse Mahyra, cuja resposta o vento soprou junto as cinzas do campo incendiado...



quinta-feira, 20 de julho de 2017

TUPÃ AFOGA AO ANHANGÁ: O SINISTRO BEBEDOURO DAS ALMAS (Lamento de Tupã, Episódio 01, Temp 01)

Um relâmpago despencou das estrelas, fazendo a água do rio jorrar numa altura acima das copas das árvores.

Debaixo d’água, agonizava o ser cujo rosto era uma pintura em forma de caveira. A poderosa mão segurava seu pescoço enquanto ele se debatia sob as águas do rio, que ferviam de forma cada vez mais intensa conforme lutava.

Quando o brilho de seus olhos vermelhos apagaram-se, ergueu-se então do rio outro corpo. A noite profunda não permitia vê-lo completamente se não pelo corpo belo e poderoso contra a luz da lua:

- Você não me deixou outra escolha – disse aquele que se ergueu do rio, tornando-se um relâmpago e retornando ao céu.

Em redor, criaturas gemeram, assobiando e fazendo com que as feras noturnas fugissem. Um farfalhar de folhas denunciava também a desesperada dos pássaros em redor. De toda parte, aquelas criaturas translúcidas e cadavéricas vinham em direção às margens do rio. Levavam água daquele rio à boca, como se tentassem desesperadamente saciar sua sede.

O funeral havia terminado. E daquele dia em diante aquele rio seria conhecido como Anhangabaú, o Bebedouro das Assombrações.




quarta-feira, 12 de julho de 2017

Ticê e o Jogo das Máscaras

O motorista do táxi abriu a porta do carro. Dele desceu o homem de smoking branco impecável, lenço prateado ao bolso, calça preta, sapato engraxado brilhando. Antes, havia saído uma mulher de delicada pele achocolatada, vestido vermelho, cabelos castanho crespos, rosto angelical e discreto.

- Nomes, senhor? – perguntou gentilmente o recepcionista.

O homem mostrou discretamente o distintivo.

- Imagino que o Gilmar havia lhe dito que eu viria.

O recepcionista fez um movimento positivo e quase imperceptível com a cabeça. Depois gesticulou com a mão para que o casal adentrasse às portas douradas do hotel.

- Por aqui, Investigador – disse ele.

Eles caminharam pelo tapete vermelho, de braços dado entre os outros convidados, todos em trajes de gala. Das guias e talismãs que ela normalmente ostentava, somente a figa de ouro estava consigo, amarrada em seu pulso direito.

Tomaram o elevador e não tardaram a chegar à cobertura, onde a banda tocava. Apesar do champanhe fartamente servido, o casal foi direto ao bar.

A mulher nem permitiu que seu acompanhante fizesse as honras:

- Vinho Branco, por favor – pediu ela, sentando-se no banco.

- Para o senhor? – perguntou o barman, enquanto servia a mulher.

- Água tônica – disse o Investigador, sentando-se ao lado da mulher e perguntando - acha que será difícil acha-la?

A dama que o acompanhava reagiu com um calafrio, abraçando os ombros. Ela possível ver que estava arrepiada devido a perfeição de sua pele exposta no vestido tomara que caia. Suas feições também se empalideceram.

- Não será trabalho algum! – revelou ela, olhando para o centro do saguão.

Lá estava a mulher que procuravam. De vestido negro, decote amplo entre os seios, cabelos negros longos e lisos, sorriso diabólico nos lábios vermelhos. Falava ao ouvido de outra das convidadas, uma mulher de cabelos cacheados presos e vestido marfim.

Tão logo ela terminou de falar, a jovem cruzou o salão foi até seu noivo, lançando champanhe em seu rosto e começando um escândalo logo abafado pelos organizadores da festa.

- Tem certeza de que é ela? – perguntou o homem.

Sua acompanhante somente mirou-lhe no rosto, com semblante sarcástico de desaprovação. Ela então passou então a sussurrar algo, segurando a figa de ouro em seu pulso direito.

Ele entendeu a deixa.


...


O rapaz levantou-se, deixando seu copo ao balcão, e foi em direção à dama no centro do saguão. Ela bebericava vinho tinto ao invés de champanhe, e sorria enquanto a festa era retomada após o escândalo.

- Ticê? – falou o homem ao pé do ouvido da mulher, chegando por trás dela.

A mulher abriu um sorriso diabólico, porém sutil.

- Posso ajuda-lo? – perguntou ela, virando o rosto sobre o ombro, em direção ao cavalheiro atrás de si.

- Sim. Digamos que eu tenha interesse em alguns de seus jogos...

- Meus jogos? - seu tom era deliberadamente sínico.

- Permita-me apresentar-me...

Ela não permitiu.

- Investigador Natã, da Polícia Civil do Distrito Federal – disse ela, virando-se calmamente para o homem.

Natã estreitou os olhos. Sentiu-se frustrado por não ter o elemento surpresa com o qual pensava contar.

- Mas...eu sempre pensei que seu trabalho era acabar com jogos, Investigador – disse ela, após vistoriar o belo corpo do rapaz diante de si, voltando a olhar-lhe nos olhos enquanto passeava com o dedo indicador pelas bordas da taça de vinho que tomava.

- Alguns de seus jogos são muito mais antigos que o meu trabalho, senhora – respondeu ele, pegando um copo de água tônica do garçom que acabara de passar.

- Hummm...e algum em especial está lhe despertando o interesse? – perguntou a mulher, acariciando suavemente com os dedos o lado do rosto dele, logo abaixo de seus cabelos com brilhantina.

- Sim. Um em especial. Um triângulo amoroso. Que a senhora provocou.

- Talvez tenha de ser mais específico...

A banda tocava. Uma balada. Casais começavam a dançar.

- Um triângulo do qual a senhora tomou parte. E que...digamos assim...deixou um sujeito trovejando de rancor, e um outro com os olhos fumegando de raiva!

Ela disparou uma curtíssima risada. Nada discreta e completamente incompatível com o decoro da festa. Todos olharam para ela, mas, logo em seguida, voltaram às suas conversas.

- Sabe, Investigador Natã...temos algo em comum. Você e eu – ela falava aproximando a boca do ouvido dele,  revelando-lhe caninos um pouco mais afiados e protuberantes que o normal.

- E o que é?

- Ambos ficamos muito melhores em nossas máscaras e adornos! – disparou Ticê, pondo a mão delicadamente no bolso de Natã e puxando levemente o lenço prateado dobrado dentro dele.

Ele imediatamente afastou-se da mulher com um passo para trás, e segurou o lenço antes que ela o retirasse por completo de seu bolso. 

- Ademais, eu não quero arrumar problemas com aquela sua amiga, rezando para o Sumé. Ou para Oxalá, como ela prefere. – proferiu a mulher, sorrindo aquele sorriso diabólico.

Natã olhou para trás e viu Luwana, sua acompanhante, compenetrada e mirando-lhes, mas ainda segurando a figa e sussurrando uma reza.

- Se desejar mais algum jogo, meu querido, me procure mais tarde. Em meu quarto...mas usando este lenço! Estarei adornada para ti, e quero que também esteja para mim – ordenou ela - Agora, se me dá licença, vou até aquele Delegado de Polícia ali. Ele tem planos para uma chacina, a fim de incriminar o Titular e tomar o comando da delegacia!

Ticê, segurando a barra da saia, foi em direção ao Delegado, que conversava numa roda de homens, deixando Natã estupefato e afrontado.

...

Contrariado, Natã respirou fundo e retornou ao abr, onde estava Luwana, que já havia soltado a figa e interrompido a reza.

- Então? – perguntou  ela.

- Ela é realmente cheia de malícia, de jogos e de encantamentos – disse ele, tomando-a delicadamente pelo braço e retirando-se da festa.

- Conte-me a novidade! – ironizou Luwana.
- Ela marcou comigo...no quarto dela.

- E você vai...agora?

- Não – ele demonstrava estar afoito – antes preciso resolver uma coisa.

- O que??

- Impedir um jogo!

Ticê, no traço de Natália Duarte

quarta-feira, 5 de julho de 2017

A Deusa da Lua Cheia


Uma viúva atendeu a porta. Tocara a campainha uma mulher alta, de olhos azuis claros e cabelos negros lisos que chegavam a brilhar quando a luz refletia sobre eles.

Intrigada a viúva mirou, com os olhos marejados de lágrimas, a visita que havia chegado. Buscou uma forma de repreender a falta de educação daquela estranha, por bater em sua porta naquela hora da madrugada.

As palavras, porém, fugiam de sua boca. Não reagiu quando a estranha mulher adentrou em seu belo casarão.

A visitante caminhava de forma majestosa e sem nenhum constrangimento pela sala de mobília nobre, estufados escarlates, talheres, lamparinas e castiçais de ouro. Ela ostentava brincos e colares brilhantes, como o vestido justíssimo em seu corpo de pele delicada.

Um grande relógio de madeira marcava exatamente meia-noite. Um gramofone que tocava uma balada tristíssima.

– Você fará um favor para mim – disse a misteriosa visita, olhando para oquadro na parede onde figurava a dona do casarão, em lindíssimo vestido de noiva, e um homem de smoking igualmente requintado.

Nem na foto, nem pessoalmente, a viúva aparentava ter sequer quarenta anos.

– O-oque? – perguntou a dona do casarão, de olhos arregalados para aquela mulher. Estava com a mão na maçaneta e a porta ainda aberta, pela qual era possível ver a Lua Crescente no céu.

– Você comprará um imóvel abandonado na Cidade de Serafins. Lá, construirá um hospício, contratando médicos e enfermeiros. Haverá um único quarto, e um único paciente.

A anfitriã tentava desesperadamente compreender por que não colocar aquela mulher para fora, logo depois de exigir saber quem era ela e por qual razão deveria obedecê-la.

Mas a única coisa que conseguiu fazer foi indagar:

– Quem será este paciente?

A visitante virou-se à anfitriã:

– Apenas construa – respondeu a mulher – A pessoa se apresentará a você, voluntariamente.

A dona do casarão franzia a testa, meneando lentamente a cabeça.

– Devo então pagar pelo tratamento desta pessoa? – perguntou.

– Não. Ela ficará apenas oito dias. Depois você deverá dar-lhe alta. Independente do que os médicos disserem.

A anfitriã apenas contemplou o andar imponente de sua visita enquanto ela ia em direção à porta. E, com a Lua cheia brilhando ao céu, olhando de forma blasé por cima do ombro, ela arrematou:

– Mais uma coisa. Você terá de inaugurar o hospício e receber seu paciente na ultima noite de Lua Cheia, assim que concluir as obras. Tão logo o sol se ponha.

Ela desceu o lance de três escadas que levavam à porta do casarão. Atravessou o jardim, passou pelo pequeno portão e caminhou em direção à esquina, desaparecendo na noite.

Quanto a dona do casarão, ela ainda estava lá. De pé. Boquiaberta e segurando a maçaneta da porta escancarada.


Os dias se passaram. A viúva mal dormia. Varava as noites acordada, escutando músicas tristes no gramofone. Tentou até poderosos calmantes e chás para dormir. Nada.

Madrugada após madrugada, ela só fazia lembrar da estranha mulher de beleza exuberante que havia lhe visitado. Quem seria ela? Que pedido estranho era aquele? E porque não conseguia esquecer essa história toda?

Quase uma semana, e ela não suportou mais. Foi até uma corretora de imóveis, e começou a agilizar a compra de um imóvel para fazer o hospício. Na verdade, o mini hospício.

As semanas foram se passando conforme ela contratava pessoal especializado, pedia ajuda, leia sobre hospitais psiquiátricos em bibliotecas e as obras andavam em Serafins.

Seu sono, contudo, foi melhorando sensivelmente neste período. E, para seu deleite, cada vez mais sonhava com o falecido marido. Sonhos vívidos, belos, nos quais ela dançava com ele, bebiam, comiam, riam. Era como se ele pudesse visita-la todas as noites, em seus sonhos.

Assim o tempo foi se passando. A obra quase pronta. Os sonhos, cada vez mais intensos.

A próxima Lua Minguante se aproximava. Era a hora de finalmente dar um fim àquilo tudo e, quem sabe, desvendar tal mistério.


A noite se aproximava. O hospício ficava numa rua movimentada de Serafins, onde havia muitas lojas, botequins e cafés. Era um prédio improvisado de quatro andares, na frente do qual estava a viúva, com sua tradicional elegância e discrição nos trajes negros, quatro enfermeiros, uma secretária e um psiquiatra, todos contratados.

Todos intrigados, pois jamais entenderam a história da tal viúva. Mas, como o salário estava em dia…

Chovera muito, e a rua estava molhada. O crepúsculo anunciava que o sol já se retirava no horizonte. As luzes da rua já estavam acesas, e a qualquer momento a Lua Cheia reinaria no céu cujas nuvens da chuva já haviam se dissipado.

Todos então viram se aproximando o belo Chevrolet vermelho 1915.

A viúva respirou fundo e arregalou os olhos ao ver a mesma mulher que meses atrás havia lhe procurado numa noite de Lua Crescente para pedir que abrisse o hospício. Ela estava banco elevado da parte de trás do carro, entre dois belos homens de smoking branco e flores-de-maio adornando o bolso do paletó. Em um justíssimo vestido vermelho decotado beijava a ambos os rapazes, mordiscando seus lábios e bebendo com eles às gargalhadas em taças de champanhe.

O carro parou.

Ela desceu. Claramente afetada pela bebida.

– Então – perguntou, com a voz embriagada, a misteriosa mulher – onde fica meu quarto?

Ela entrou, acompanhando dos enfermeiros e do psiquiatra.

A porta ficou aberta. com a viúva perdida num olhar vazio, iluminada pelas lamparinas da rua e pela tênue Lua Cheia no céu.

No dia seguinte, seria Lua Minguante. E o terror começaria...


Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até al...