sábado, 5 de dezembro de 2020

Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até ali, entre eles Jepê, pararam antes dela, observando-a. A moça estava irreconhecível, com o corpo coberto por pinturas rupestres de diferentes bichos da mata. Ela avançou, e logo aqueles homens a perderam de vista, desaparecendo na escuridão da caverna onde entrara.


 Três daqueles quatro caçadores voltaram para a aldeia...


Lá dentro, turo era breu. Isabela se lembrou da advertência do Nhanderu: "não leve tocha". Fechando os olhos como lhe fora orientado, Isabela “viu” uma coruja voar para diante de si. Ao abri-los, contemplou com nítidez o túnel irregular, que parecia levar a uma câmara no fim do mesmo. As paredes eram negras e úmidas, adornadas com rostos semelhantes aos da entrada. Pinturas rupestres típicas das tribos da região cobriam as paredes: não conseguiu entender o que diziam, contudo. O teto, coberto por teias de aranhas, era ainda mais enegrecido.


Um Morcego então veio à mente de Isabela. Tudo ficou escuro de si, diferente de como via como Coruja, mas as ondas de movimento como de um sonar eram claramente discerníveis. Ao perceber as ondas em torno de uma grande seta vindo em sua direção, a mulher se lançou ao chão.


Respirando para conter seu coração acelerado, ela se levantou. Avançou na ponta do pé e segurando a respiração, mas gritou ao cair num poço estreito. Do fundo dele, podia ouvir o sibilar das serpentes. Logo a Aranha tomou o lugar do Morcego entre suas visões e pensamentos, e, escorando-se com mãos e pés nas paredes do buraco, a mulher evitou a queda e escalou para fora.


- Isso aqui não é brincadeira. Nem mito! - sussurrou para si mesma.


Mais alguns passos, e lá estavam dúzias de flechas enterradas num novo chão, agora, de terra. Isabela tomou cuidado ao respirar, a fim de evitar o odor dos corpos decompostos, estrteitando os olhos ao não sentir tal odor de forma alguma. Depois, olhou para cima, e notou uma vegetação simples com vários cipós cobrindo o teto.


- Flechas disparadas do teto. Não faz sentido. De onde viriam? - questionou-se. Olhou mais uma vez, e notou que os corpos e as setas não obedeciam a um padrão, estando espalhados aleatoriamente pelo terreno.


- Qualquer pessoa que pisar ali será atingido!


O Macaco surgiu diante dos olhos dela, como a Aranha anteriormente. Isabela tomou fôlego e deu um salto humanamente impossível em direção aos cipós. Pulando de um para o outro, atravessou o chão de flechas e chegou ao outro lado, na entrada do que parecia uma câmara.


Antes de adentrar, ela tomou uma das flechas.


- Não é dos Nhandeva...mas não reconheço este tipo de flecha como de nenhuma outra nação. Isto...isto não é pedra lascada, nem ferro ou cobre...


Largando a flecha ao chão, Isabela finalmente entrou na câmara. Era circular, repleta de teias de aranha, com desenhos em suas paredes. Um raio de sol adentrava diagonalmente por uma brecha no teto, iluminando um altar feito de pedra esculpida.


 - A Ânfora devia estar sobre este altar...


Isabela se aproximou quase que na ponta dos pés, quando sentiu o espetar em seu pé:


- Como um homem branco consegiu entrar aqui? - ela se perguntou encontrando no chão um canivete suiço novo e em ótimo estado.


Um barulho repentino interrompeu seus questionamentos. De várias partes das paredes viraram-se blocos de pedra como se fossem portas, construídas de forma que ficavam indistinguíveis do restante das rochas. Daquelas portas surgiram nativos de aspecto empalecido e cabelos longos, vestidos com roupas pretas e cinzas que pareciam sacos cobrindo sua pele. Nenhum era jovem, mas aquele que parecia o mais velho dentre eles portava um cajado:


- Quem lhe deu o poder para chegar aqui? - perguntou ele, em perfeito português, aproximando-se de Isabela.


A menina, por sua vez, tentava futilmente ocultar o fascínio sob olhar audácioso, pensando em cada palavra antes de responder:


- Jaçaranã, da aldeia Nhandeva, sagrou o meu corpo e me concedeu o poder para adentrar a este Templo.


- E por quê? - perguntou o ancião.


- Uma maldição caiu sobre a aldeia. Ele suspeitou que o Santuário tivesse sido profanado, Mas como os ancestrais Jaguarí ordenaram que nenhum Nhandeva poderia aqui entrar, me ofereci para descobri o que estava ocorrendo.


Os homens se entreolharam. Depois, o ancião se voltou para Isabela. 


- E o que sabeis sobre os Jaguarí?


- Memoráveis, guardiões dos segredos e da ciência, que desapareceram a tempos incontáveis!


Os homens se aproximaram do ancião e falaram com ele num idioma que Isabela jamais ouvira. O velho escutava-os, mas mantinha contato olhos nos olhos com ela. Após ouví-los por alguns instantes, ele ergueu a mão direta, calando-os de forma imediata.


- Ela fala a verdade - decretou o ancião - A jovem caraíba odeia mentira. - O homem ficou frente a frente com Isabela - Vamos lhe indicar qual caminho seguir para descobrir o que aconteceu - disse ele.


Isabela, que ouviu o barulho de mais uma parede se abrindo, arqueou as sombrancelhas e moveu os lábios para agradecer: 


- Contudo, devo adverti-la. Você vai descobrir verdades que tanto ama e busca. Mas elas vão machucá-la de forma tão profunda que terá de reexaminar seu coração - decretou o ancião, impedindo Isabela de agradecer.


Os homens então se voltaram para as passagens nas paredes, retornando de onde vieram diante de uma Isabela boquiaberta, iluminada pelo sol que descia pelo teto.


- Esperem - clamava Isabela - Quem são vocês? Quem construiu isto?


A resposta veio enquanto uma das passagens se fechava: 


- Nós, os memoráveis guardiões do segredo e da ciência, como tu mesma o disseste.


...

Êxtasiada, Isabela atravessou o corredor com a Coruja fazendo-a enxergar no breu total. A porta daquele corredor, que levava para a floresta do lado de fora, foi fechada da mesma forma como aquelas outras que trouxeram os homens na câmara.


Ao encotnrar o sol, a moça cerrou os olhos e pôs o antrebraço sobre eles. Parando ao lado de uma árvore, ela se escorou, piscando até conseguir reabrir permanentemente os olhos. Ao se recuperar, logo percebeu a clareira com um jipe e três homens cablocos conversando com um nativo.


A Cobra surgiu diante de si, e ela rastejou pelo mato até a clareira.


- Ora Jepê, então quer dizer que você está com medo de uma moça branca pintada? - perguntou um dos cablocos, ente colheradas de comida, sentado à frente de um caldeirão.


- ‘Oceis’ ‘menospreza’ o Nhanderu - respondeu Jepê, em português.


- Ele sabe falar português? - questionou Isabela, em pensamento, ouvindo a conversa do mato.


- E o que ela pode fazer? - perguntou o outro homem, atrás de Jepê e arrumando alguma coisa na carroça.


- Não sei - respondeu o índio - Mas por via ‘das duvida’, quero acertar logo nosso preço. É melhor não arriscar.


O homem à frente de Jepê levantou-se do banquinho e pegou um março de dinheiro do bolso. contou e entregou parte do bolo. O índio, por sua vez, olhava admirado para aquele pedaço de papel. Ainda assim, questionou:


- Sim, mas não é só isso.


- E o que mais ‘ocê’ quer? - perguntou o homem que lhe dera o dinheiro.


- Esqueceram do trato? - protestou Jepê: - Eu dizia onde ficava o templo. Em troca ‘ocês’ me ‘dava’ o tal do dinheiro e me ‘tirava’ desta terra.


Isabela cerrou furiosamente seus lábios. Se lembrou do bilhete de sua mãe...


- É verdade! - concordou o homem que estava sentado comendo, cuspindo comida pela boca antes de concluir: - Combinamos de tirar você daqui.


Um tiro.


- Pronto, já foi tirado daqui pra Terra-dos-pé-Junto - disse o homem que estava atrás do índio, após encontrar o revólver que procurara na carroça.


Isabela expirou com ódio. O Macaco surgiu diante dela de novo.


- Mas diacho! - reclamou, apalpando os bolsos, o homem que estava sentado, após colocar o prato de comida no banquinho e pegar de volta o dinheiro em cima do cadáver de Jepê.


- O que houve ?- perguntou o outro.


- Perdi meu canivete!


- Achei pra você!! – surgiu Isabela, saltando do matagal e arremessando a peça no olho do sujeito. Ela correu em direção a ele, e na trajetória chutou o revólver na mão do outro jagunço. Com a luta do uka uka, que aprendera em outras tribos e noutras ocasiões, tomou o braço do homem com o olho cavado do canivete, fraturando-o com uma chave. Depois, saltou para para trás, agachada em selvagem posição de combate, com uma das mãos e nenhum joelho no chão.


O terceiro jagunço correu para a carroça. Ao mesmo tempo, o jagunço que matara a Jepê tentou sacar seu facão. Isabela se ergueu, segurou o pulso dele e atingiu suas costelas com uma joelhada. Por fim, arrebentou-lhe o nariz uma cotovelada.


- VAI, VAI CARALHO, VAI! - disse o jagunço de braço quebrado, que subira com dificuldade na carroça. O outro patife, que subira antes, não pensou duas vezes.


Arrebatada por um impulso, Isabela correu, correu com todo seu ímpeto, atrás da carroça. Vendo uma onça diante de seus olhos, fulminou a distância entre si e o veículo.


- QUE DIABO É ESSA MULHER? - perguntou o condutor da carroça.


Em igual desespero, o outro pegou seu revólver e disparou para trás. Antes do disparo, Isabela já havia saltado sobre a parte de trás da carroça, alcançando-a. O solavanco devido ao pedregulho sobre o qual uma das rodas passou fez o jagunço errar o tiro, e lançou Isabela para fora da carroça numa ribanceira ao lado. A carroça se perdia ao longe, enquanto Isabela caía, batendo com a cabeça num dos galhos das árvores espalhadas pela ribanceira e tombando às margens do rio lá embaixo.

...


Isabela voltou a si na beira do rio, com o sol quemando-lhe o rosto. Pôs a mão na testa, resmungando devido a dor, e se arrastou até a água, levando-a à boca e depois à testa suada. 


- A aldeia! - ela disse para si mesma, erguendo-se na areia.


Isabela levantou e correu pela margem do rio, que sabia levar a um córrego o qual chegava próximo de onde os Nhandeva viviam. O pulmão parecia saltar pela boca e as batatas da perna clamavam: nenhuma onça, coruja ou morcego surgiram de novo diante de seus olhos.


Minutos depois, podeia ver as ocas da aldeia.


- Não, não, não… - repetia Isabela, caminhando entre os corpos espalhados pelo chão com lágrimas nos olhos e as mãos na cabeça.


O grito da mulher ecoou pela mata.

Dia seguinte


- Srta. Bittencourt! Já de volta? - perguntou o recepcionista alto, gordo e calvo, ao ver Isabela entrar na pousada com mochila de campanha nas costas.


- Infelizmente... – ela respondeu, ofegante e cabisbaixa.


- Tá aqui – o recepcionista entregou-lhe uma chave, notando então o galo na cabeça e o suor nas roupas cáquis de exploradora que ela vestia – depois ‘ocê’ acerta.


- Obrigada, Ferreira.


Isabela foi direto ao chuveiro, após jogar a pesada mochila ao lado da cama. Se despiu e entrou deibaixo da água, ensaboando-se insentamente com os olhos fechados enquanto deixava a água fria cair-lhe sobre o rosto. Após profundo suspiro, abriu os olhos e abaixou a cabeça, procurando a tinta dos Nhandeva a correr-lhe pelas pernas.


- Essas pinturas não saem com água? - ela se perguntou.


Isabela esfregou mais, e cada vez mais intensamente. Nada. Sequer crostas de tinta seca. Era como se as pinturas estivessem marcadas pela sua pele, como tatuagens.


Após tentar oturas três vezes, Isabela saiu do chuveiro e parou iante do espelho, nua, contemplando-se vestida daquelas pinturas antigas e sagradas.

...

Três dias depois


Ruborizados, os passageiros se cutucavam e cochicavam pela área de embarque do Aeroporto Santos Dumont. Apontavam sutilmente para a mulher de pinturas rupestres expostas pelas partes de sua pele que o vestido blazer riscado, costurado em Paris, não escondia.


A indiferença narcisista da moça itensificou o choque.


- Bom dia Anacleto - saudou Isabela, saindo do aeroporto e indo de encontro ao motorista de sua mãe, para o qual enviara telegrama pedindo que a buscasse.


O empregado procurava palavras.


- O que aconteceu, Anacleto?


- Senhorita, eu não quis falar sobre isso por telegrama quando me contatou em São Paulo e...


- Vá direto ao assunto!


Ele respirou fundo:


- Sua mãe senhorita. Ela...ela...ela faleceu há duas semanas. E era impossível entrar em contato com a senhorita no Mato Grosso.


Isabela tentava manter o olhar blazé.


- Meus pêsames - disse Anacleto, tomando a pouca bagagem das mãos dela e depositando-a no carro, enquanto a jovem, atônita, sentou-se no banco de trás. - Para onde senhorita? - ele perguntou, após entrar o carro.


- Para o cemitério.


O veículo seguiu pelas estradas da Capital Federal, enquanto Isabela olhava pela janela com seus olhos amendoados refletindo o por do sol. Ao chegar no cemitério, comprou flores. Após minutos de caminhada, encontrou o tumulo de sua mãe ao lado do de seu pai, perante os quais se agachou. O vento soprava a seus cabelos, e os olhos dela finalmente lacrimejaram:


- Nenhum mundo é perfeito. Era disso que falava, mamãe?


Isabela chorou, tanto quanto pode. Depois, enxugou as lágrimas. Deixou ali as flores. E caminhou em direção à saída do cemitério.



quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Lamento de Tupã - Jururá-Açu e os Segredos sob a Terra

 - Dá-nos de beber! Dá-nos de beber!


A virgem veio na direção daqueles murmúrios. Eram ecos cavernosos, que subiam pela grama e pelos arbustos espalhados no pé da serra:


- Dá-nos de beber! Dá-nos de beber!


Ela se abaixou, e passou a mão pela grama. Depois, colocou os cabelos negros do lado oposto de um dos ouvidos, aproximando-o do chão e afastando a cabeça em seguida.


- Q-quem são vocês? – perguntou a donzela, aproximando os finos lábios da grama ao chão.


- Dá-nos de beber! Dá-nos de beber! - repetiam as vozes lá embaixo.


Ela se levantou. Com os braços semiabertos, abriu as mãos. Fechou os olhos, inspirando e expirando suavemente: a cada inspiração, o orvalho da madrugada surgia, e a cada expiração, ele caia sobre a grama, sobre as folhas e sobre os arbustos pela serra.


Quando o orvalho tomou toda a terra, os gemidos cessaram.


- Vocês ainda estão aí? – ela perguntou.


- Daqui não podemos sair! - responderam.


A virgem suspirou, e fechou de novo os olhos, voltando a inspirar e expirar numa intensidade maior que se percebia no mover de seus desnudos seios. A expiração trouxe intensa chuva que, diferente do orvalho, desabou sobre a serra. Enquanto caia a tempestade, a moça movia horizontalmente os dedos das mãos, como se estivesse revirando o solo duro para que a chuva penetrasse mais e mais na terra.


Os ecos cavernosos voltaram a ser ouvidos. De lá de baixo, mãos carcomidas abriam caminho pelo chão fofo, surgindo feições distantes e em agonia. Algumas pareciam pertencer a homens, outras, a veados, antas ou tatus. Todas carcomidas, porém translúcidas, se erguiam do chão molhado enquanto uma fumaça de odor sepulcral subia aos céus.


Ela então se voltou a eles, com sorriso cândido.


- Ele ainda está preso! – disse um deles, apontando para uma protuberância mais adiantada na serra.


Ela se virou para o local indicado, e cerrou a mão esquerda. A tempestade ficou mais intensa. Com a mão direita, inclinou o vento e a chuva para a protuberância da serra. A pedra foi transformada em lama, e revelou uma caverna cuja escuridão veio sendo dissipada, como se uma tocha brotasse das profundezas da serra.


Os gemidos dos mortos vivos imaediatamente retornaram, não mais cavernosos, mas em tom de êxtase e intercalados com assobios. O som, que tomou toda a serra, pôde ser pavorosamente ouvidos nas aldeias mais distantes.


Finalmente, ele surgiu do fundo da caverna, e a fumaça emanada pela chuva que caia-lhe sobre o corpo subiu até o mais alto céu.


Todos retiraram-se dali, seguindo aquele que brotou das profundezas da serra, não sem antes beijarem as mãos e os pés da virgem. Somente ela ficou na serra, correndo em direção à caverna, excitada por curiosidade explítica em sua face.


Ela ficou lá embaixo até perder os sentidos de quanto tempo passara nas entranhas do Mundo Subterrâneo, até ser interrompida pelo primeiro relâmpago que caiu das nuvens formadas sobre a serra. Se assustou como nunca antes em sua Eternidade: olhou para cima, e mesmo de lá das profundezas das trevas da Mundo Subterrâneo, podia contemplar os céus.


A donzela gritou pela primeira vez.


A subida foi dolorosa, após gritos de horror.


Sobre a serra, de frente para a caverna aberta, seria possível vê-la surgindo. Com uma outra nova chuva caindo sobre si, ela urrava enquanto suas delicadas pernas e braços tornaram-se enrugados, os longos cabelos negros caíram de sua cabeça e o ventre esbelto enrijeceu-se, tornando-se esverdeado. Os redondos e pequenos seios desapareceram. Das costas, brotou indestrutível casco. E o rosto de traços encantadores tornou-se a cabeça de uma tartaruga.


A imensa Jururá-Açu ali clamou, desesperada. As nuvens no céu se dissiparam. E o sol nascia ao horizonte, lançando a sombra de sua nova e gigantesca forma sobre a entrada da caverna na serra.

 


São Paulo, 1949


Ninguém pode desconectar-se assim com o mundo, mesmo que tenha escolhido outro – dizia o bilhete que Isabela encontrou quando abrir seu diário. Tinha ouvido as mesmas palavras da boca de sua mãe, antes de sair de casa batendo a porta e jurando não mais voltar.


O sol da manhã brilhava sob a aldeia dos Nhandeva. Isabela, que havia se levantado junto com seus anfitriões, devolveu ao diário o bilhete que sua mãe lá deixara, encontrado em seguida um retrato do pai. Após passar carinhosamente o dedo sobre a fotografia, retornou à página marcada do diário, pondo-se a anotar que ouvira na noite anterior. 


“Não hã, dentre as muitas etnias grosseiramente generalizadas de ‘indígenas’, tribo mais nobre e enigmática que os Jaguarí. No passado homens de grande ciência, sabedoria e poder, foram os guias de todas as crias de Nhanderuvuçu sobre a terra, numa época em que a guerra já não existia e a caça, pesca e agricultura alimentavam a todos. Foi assim até mesmo nos momentos difíceis, quando os temíveis espíritos malignos de Tau - espírito da escuridão - cobriram a terra com as trevas, e quando Luzizu trouxe a morte aos homens. Para ela (a morte) os nobres Jaguarí deram propósito e explicação.


Mas a Era dos Jaguarí se encerrou com o Dilúvio. Eles guiaram alguns escolhidos de outras tribos até Juruoca, a enorme caverna que levava até o centro da terra, lacrando-a e protegendo os homens da morte pelas águas. Quando estas recuaram, os Jaguarí trouxeram as tribos de volta a Pindorama para, então, desaparecerem, entristecidos, cabisbaixos e decepcionados.


Nenhum Pajé ou índia anciã jamais me explicou a razão deles terem abandonado as demais tribos e desaparecido de forma tão melancólica. Contam apenas que, após a partida dos Jaguarí, as tribos aprenderam as artes da guerra e passaram a se odiar, lutando por território onde a caça e a pesca fossem abundantes.


Isabela ainda se lembrava da noite anterior, quando ouvira aquela história narrada cerimonialmente pelo Nhanderu em torno da fogueira no centro da aldeia. Estava seminua, pintada à moda nhandeva e relaxadamente sentada próxima ao fogo. Ouvia ao Nhanderu enquanto saboreava um peixe assado temperado de forma que nenhum gourmet parisiense poderia fazer. Enquanto escutava, calculava como traduzir tamanha rizqueza para sua tese de doutoramento: não ousava dar à narrativa qualquer peso de fato, mas, por tudo o que já vira habitando entre os nativos – coisas que nunca teve coragem de relatar a seus professores na França – mantinha sua mente acadêmica dosada pelo fascínio.


Foi quando o grito de horror ouvido do lado de fora da oca trouxe a mulher de volta dos pensamentos.


Na parte central da aldeia, uma jovem nhandeva e seu irmãozinho choravam de desespero, relatando aos seus irmãos a podridão das frutas nas árvores e os peixes, fedorentos, a boiar na superfície do riacho alí perto. Isabela, que entendia perfeitamente o idioma, se aproximou enquanto os aldeões questionavam ao velho e sábio Nhanderu o que estaria acontecendo.


O velho pajé proferiu a palavra em tupi, e os aldeões recuaram, com olhos esbugalhados, tapando as mãos com as bocas.


Isabela não compartilhou das expressões de horror, mas observava com olhos zelosos a cena. Já tinha ouvido sobre o artefato que o Nhanderu acabara de mencionar. Em tempos imemoriais, um ancestral Nhandeva teve de lutar contra um vento noturno que causava arrepios. Domando as bestas da mata, tornava seus olhos vermelhos e fazia o fogo se alastrar. A morte lhe antecedia e lhe seguia em sinais de folhas secas, frutas podres e peixes mortos. O nome dele era Anhanguera, a besta do deus da morte Anhangá.


Um valente guerreiro matou bestas dominadas pelo Anhanguera, três vezes, três delas. Anhanguera reconhecia o valor de quem o vencia por três vezes, e nunca mais atacava nem ao vencedor, nem aos seus. Mas, quem deteria o Anhanguera? Continuaria ele a espalhar a morte?


Aquele ancestral Nhandeva encontrou um Jaguari, talvez o último deles entre os homens. O Jaguari esculpiu uma Ânfora, marcada com pinturas sagradas, que poderia aprisionar o vento assombroso. Pondo-se entre o monstro e uma pobre aldeia a ser consumida, o valente guerreiro aprisionou Anhanguera na Ânfora e, sob orientação do Jaguari, a guardou numa das antigas cavernas que eram morada dos misteriosos ancestrais. A Caverna das Amendoeiras.


Desde então, a aldeia guarda a caverna. Não tem permissão para entrar lá: é tabu o pelo ancestral que venceu ao Anhanguera. Isto porque só os Nhandeva poderiam sobreviver se lá. Qualquer outro que o fizer, este morrerá, por não conhecer os mistérios da Caverna.


- Alguém tirou a Ânfora da Caverna das Amendoeiras - sentenciou o velho pajé.


- Só nós sabemos como entrar e sair. Só nós podemos entrar. Vou até lá e entender o que aconteceu - disse o Cacique, enquanto os caçadores e guerreiros da aldeia se movimentam para pegar suas armas.


- Não - ordenou o Nhanderu - É tabu - respondeu, sentando-se pesarosamente num tronco de madeira, apoiado por seu cajado.


- Então porque os segredos do templo foram-nos revelados através do senhor e dos outros Nhanderu, seus antepassados?


O ancião direcionou um olhar paterno ao Cacique:


- Para que nós sejamos justamente os guardiões do santuário - respondia - e para testar nossa honra e sabedoria, não usando este segredo de forma leviana. Pelo mesmo motivo, não posso consultar os ancestrais para saber o que se deu. Nem eles podem entrar lá.


- “São apenas mitos criados para impedir a entrada desta e de tribos rivais. Que poder de persuasão!” - pensou Isabela consigo mesmo. Logo depois, e devido ao mesmo pensamento, os olhos dela brilharam de excitação:


- Eu não sou Nhandeva! - gritou mulher, ousadamente, distante que estava do Nhanderu cercado pelo Cacique e demais guerreiros.


A aldeia imediatamente se voltou para Isabela, “a brava e gentil donzela branca de olhos de amêndoa”.


- Mas entrar no Caverna das Amendoeiras é coisa para os mais valentes guerreiros – retrucaram os mais novos.


- E nossos lugares sagrados não são para caraíba! - arremataram os mais velhos.


- A minha entrada não quebra o tabu. Basta vocês me prepararem para o que devo enfrentar – argumentou Isabela.


A tribo entrou em alvoroço.


- Não podemos confiar nos olhos de amêndoa! - disse Jepê, um dos caçadores da aldeia - Ela pode roubar a Ânfora ou nos fazer algum mal - acusava o índio, recebendo concordância de alguns.


 - Talvez seja a única saída! - diziam outros.


- Vocês não sabem o que dizem! Como esta mulher branca entraria e passaria na caverna? - insistia Jepê.


O Cacique, emburrado, concordou com o caçador:


- É verdade. Ela não conseguirá.


- Conseguiria se o Nhanderu lhe desse orientasse - respondeu um dos anciões, logo seguido por outros - É verdade. Sim, é verdade!


- Isso é loucura! - questionou Jepê, caminhando em direção a Isabela e olhando-a de cima a baixo - Não podemos confiar nosso destino a esta mulher banca!


- Em meu coração, sou uma de vocês - respondeu Isabela para Jepê, fitando-o de forma corajosa.


 - Ela jamais nos deu motivo para duvidar de sua palavra – disse uma anciã, a mais velha dentro todos ali. Ela tinha acabado de sair de sua oca, o que raramente fazia, e se aproximava enquanto os demais abriam caminho.


A tribo se voltou para o Nhanderu que, por sua vez, direcionou o olhar para o Cacique o qual, finalmente, ainda que relutando, concordou balançando a cabeça.

 

- Vocês são loucos! – murmurou Jepê.


O Nhanderu se virou para Isabela, chamando-a com um dedo. Ela obedeceu, enquanto os demais aldeões fizeram um círculo entre eles dois. 


- Preparem as pinturas, pois temos muito a fazer no corpo dela e pouco tempo - ordenou o pajé.


- Quais pinturas faremos no corpo dela? – perguntaram.


- Todas – respondeu ele.




domingo, 29 de novembro de 2020

Lamento de Tupã - Tupã e Anhangá no Bebedouro das Almas

 Aurora dos Tempos.


Um relâmpago despencou dentre as estrelas. Água jorrou acima da copa das árvores com o impacto dos corpos que caíram no rio. Os abutres sobre os galhos se afugentaram.


Debaixo da água à fervilhar, um dos corpos tentava se desvencilhar da mão que segurava-lhe o pescoço. O olhos de fogo em sua face pintada como uma caveira branca iam se apagando enquanto se debatia. Os abutres assistiam em galhos mais distantes e, debaixo deles, as almas entre os arbustos gemiam e assobiavam.


A água então parou de se agitar. Depois, de fervilhar. Somente uma fumaça subia dela.


- Você conheceu o ciclo da existência e dominou sobre ele - disse o deus forte e nu, com a mão ainda no pescoço do afogado - Nascer, crescer, envelhecer, morrer. Usou sua sabedoria para assombrar aos homens e atormentar os seres viventes, tirando-os do ciclo, levando-os à morte, trazendo-lhes agonia. Agora, eis aqui seu túmulo, onde o fogo de sua ira contra os homens não mais arderá.


Um relâmpago se formou em meio as águas, e o deus que recitara aquelas palavras, cuja face ficara oculta na penumbra daquela noite, retornou para os céus.


As almas em redor que gemiam, gemeram mais alto. As que assobiavam, assobiaram mais agudo. E correram, sedentas, até a água do rio onde o cadáver jazia.


Um farfalhar de folhas denunciou o retorno dos abutres, que trouxeram consigo corujas e urubus. O funeral havia terminado. E daquele dia em diante, o rio seria conhecido como Anhangabaú, o bebedouro das assombrações.

...


São Paulo, Março de 1949


O relógio do edifício Mappin batia meia-noite. Djaru, que chegara desapressadamente pouco antes, parou sobre o Viaduto do Chá. Arriou no chão o balaio cilindrico que trazia por uma alça de couro e, na 12° baladada do relógio, tirou de dentro um vaso de barro no mesmo formato do balaio.


Não demorou para que eles surgissem, vindo de ambos os lados do viaduto. Trôpegos, acinzentados e rotos, se aproximavam entre gemidos e grunidos. Djaru desembocou o vaso e se afastou, se sentando ao meio fio enquanto tirava o chapéu de palha de aba larga que cobria sua cabeça. Enquanto os mirumbundos bebiam, o índio abriu a sacola artesanal que trazia consigo, sacando de dentro dela um longo colar de contas negras, redondas e idênticas. Dedilhou-as sem pressa.


Após beberem da água dentro do vaso, as almas se dispersaram em silêncio. Com o Viaduto deserto, Djaru se levantou, serenamente como chegara, indo em direção ao vaso. Guardou-o no balaio e o pôs de volta às costas. Depois, desceu o viaduto, recordando a conversa que tivera horas antes.


Pedi tua presença, e tu veio por mim...- ela saudou.


 Djaru tentava manter os sentidos ao ouvir aquela voz, diante da deusa de olhos verdes que emergiu da piscina de água natural.


- Deixei tua prenda na entrada – respondeu ele.


- E já te permitirei encher o vaso. Mas há outra coisa...


 Janaína caminhou nua pelo oásis artificial ao redor da piscina, exibindo a exuberancia curvilínea de seus quadris e seios.


- Te ouço – disse Djaru, tentando desviar das curvas, dos seios e dos quadris dela. Os cabelos de Janaina moviam-se sozinhos, como se ela ainda estivesse dentro da água, e era para neles que o índio se concentrava.


- Três Almas violaram meu lago e apavoraram minhas Vizitas. Estavam descontrolados pela Sede. Tive que gritar para lançá-los fora…


- Vou guiá-los – prometeu Djaru, que voltou a si quando chegou ao terreno baldio.


Adentrando pela trilha ladeada por árvores, chegou à oca no centro do terreno. Lá dentro, pendurou o colar de contas na parede e estendeu uma esteira ao chão, sobre a qual se sentou. Depois, encheu uma cumbuca com água, colocando-a diante de si. Por fim, sacou de dentro da bolsa um chocalho e um cachimbo, passando então a selecionar ervas.


Aceso o cachimbo, ele tragou demoradamente. A fumaça encheu a oca. Depois, assobiou na frente da água.


- Vosmicês que invadiram a Lagoa da Iara, eu os chamo!


Ele assobiou mais três vezes, e as Almas Penadas se aproximaram do terreno baldio. Cambaleavam entre as árvores na direção da oca, que resplandecia diante daqueles olhos mortos.


Djaru, por sua vez, abriu seus próprios olhos. Rotos e acinzentados, um deles tinha o braço evidentemente quebrado, além de um buraco no peito. O outro, nariz e maxilar deslocados. O terceiro, o crânio esmagado.


Djaru se preparava para recitar uma oração diante da água, mas deteve-se com uma respiração pesada de ira. Via nítidamente o sangue vívido e fresco nas mãos deles. Com os dentes cerrados, o índio se pôs de pé e chutou a cumbuca de água, sacando depois o chocalho. O Cântico Fúnebre que entoou em seguida foi concluido com um movimento de braço, cruzando diagonalmente o ar com o chocalho que segurava.


As Almas Penadas gritaram, setindo um rimbombar em seus ouvidos, e viram Djaru de pé acima deles na oca, enquanto desabavam imediatamente no Inferno.


...


2 horas antes


 A estação foi tomada pela fumaça quando o trem parou. Djaru olhou para o relógio pendurado na parede, conferindo ser 23:06. Dos vagões, primeiro saíram os passageiros, alguns sonolentos, outros neuroticamente agitados, todos desorientados, olhando em volta. Só então saiu o Maquinista: sujeito pálido de nariz pontudo inumanemente longo, péle enrugada e manchas vermelho-sangue no uniforme.


- Sempre pontual – disse o Maquinista, sorrindo com poucos dentes amarelados. 


 - Vindo de ‘ocê’ é um elogio – respondeu Djaru.


 - É o meu trabalho.


 - Cada um de nós tem seu “trabaio”. Trouxe a encomenda?


 O Maquinista abriu ainda mais aquele sorriso de dentes amarelados.


 - Claro! 


 Ele caminhou até o último dos vagões. Voltou logo, trazendo uma rústica garrafa de vidro tapada com rolha de madeira, com um líquido dourado dentro. Entregou-a a Djaru.


 - O Curupira está na cidade... - revelou o Maquinista, enquanto Djaru guardava a garrafa dentro de sua bolsa 


 Ele moveu gravemente os olhos de sua sacola para o Maquinista:


 - Qual dentre eles? - perguntou.


O Maquinista riu, e sua risada fez com que os pássaros do outro lado do trilho fugissem dos galhos das árvores onde repousavam:


 - Eu não disse “um dos Curupira” – respondeu ele, mancando em direção  a Djaru - Nem disse “um dos Kaapuã”. Eu disse “O” Curupira.


Djaru meneava lentamente a cabeça, franzindo a testa:


- Mas o que ele fez para ser condenado? – perguntou.


- Nada. - o Maquinista se virou para retornar à locomotiva - Veio por contra própria.


- E por que ‘ocê’ o trouxe?


- Você mesmo disse – respondeu o Maquinista, pela janela da locomotiva – “Trabalho!”.


A fumaça se dissipava, e entre mais risadas, a locomotiva começava a se mover. Ninguém havia embarcado. Na estação, só havia Djaru, de pé ao lado do balaio que trouxera nas costas, observando o trem ir embora.


...


3 horas depois


 O arranha-céu tinha somente a lua sobre si. O topo do agonizante Edifício Martinelli, outrora imponente em meio à megalópole, exibia toda a cidade dos homens.


 Dajru caminhou pelos decadentes cômodos daquele terraço, com a luz da lua a mostrar-lhe os corredores e as frestas sem portas nem janelas. A mesma luz lançou contra a parede sua silhueta de manta, chapéu de palha e colar de sementes de jabuticaba.


 Ele acendeu um lampião, e a luz amarela, feia e artificial, iluminou o cômodo abandonado, revelando, nas paredes, pinturas rupestres em giz vermelho. Parando diante do gigantesco ninho que estava encostado na parede oposta à porta, o homem pôs a mão em sua sacola, tirando dela a garrafa com líquido dourado. Deixou-a diante do ninho e, de costas, se retirou do cômodo. Por fim, apagou o lampião. Esperou.


O barulho da rolha sendo retirada o fez fechar os olhos. E o som de um corpo caindo na palha o fez respirar aliviado.



sábado, 28 de novembro de 2020

Lamento de Tupã - Jací e a Criação do Mundo: Segredos sob o Céu

A jabuticabeira estava finalmente plantada. Terminado o trabalho, ele se sentou junto ao tronco: podia, enfim, contemplar a Criação.

Mas aqueles olhos, cansados tanto quanto santisfeitos, foram lentamente tosquenejando, não importava o quanto tentava mantê-los abertos. Quando o corpo acomodou-se junto ao tronco da jabuticabeira, os olhos flamejantes, cada vez mais pesados, não resistiram.

Assim que ele dormiu, o fogo foi ocultado pelas pálpebras, e a terra caiu em trevas. Os bichos se escolheram em meio ao breu e as folhas, tão jovens, sufocaram.

A Criação gemeu de medo e, dentre as estrelas, ela ouviu.

Descendo dos céus até a mata, ela procurou por entre as árvores, não tardando a encontrar o homem nu e de pele dourada dormindo junto a jabuticabeira. O brilho flamejante daquele corpo foi refletido pelos olhos e cabelos da donzela, reluzindo em prata diante de toda a Criação.

Os peixes foram então reconfortados e as folhas, enfim, respiraram.

Com a mão acariciando-lhe o rosto, ele acordou. Boquiaberto, olhava para os lábios delicados e seios atrevidos da donzela que, admirando-lhe o viril peitoral, detinha-se em sua boca. Num ímpeto, ela se lançou sobre ele, acomodando-se em sua ereta genitália enquanto segurava-o pelos cabelos.

A paixão do beijo que se seguiu os fez arder.

Ele ofegava, ela gemia. A penetração estremeceu a terra com o mover dos corpos, e a Primeira Montanha formou-se com vento da líbido dos amantes.

- NÃO! - a negativa dele fez chorar todos os pássaros da Criação.

- Guaraci, meu amor! - ela suplicou, após ser tirada de sobre seu amante.

- Você não pode suportar meu calor – disse ele, subindo ao céu com lágrimas a descer pelos olhos – e a Criação necessita de ti.

Ela também chorou, contemplando o céu. Ouvindo-a, as feras e os pássaros vieram consolá-la, enquanto as folhas caiam sobre seus cabelos, louvando silenciosamente por aquela que fora a Noite Primeva.
...

Minas Gerais, 1937.

- Quem será uma hora dessas? - murmurou dona Gestrudez, ao ouvir o toque da campainha.

Abriu a porta, Recuando diante da mulher de feições delicadas e longos cabelos negros. Ela adentrou, olhando em redor na sala de paredes brancas e tons dorados enquanto Dona Gertrudez segurava, pasmad,a a maçaneta.

A recém-chegada caminhou por entre a mobília nobre da sala num vestido prata justíssimo que marcava-lhe o corpo torneado.

No rádio, tocava Chão de Estrelas.

-Você fará um favor para mim – disse a mulher, depois de parar diante de um quadro na parede onde figurava Dona Gertrudez, ainda jovem e vestida de noiva, ao lado de um homem de smoking.

- Que? – Dona Gertrudez ainda segurava a maçaneta da porta.

- Você comprará um imóvel abandonado na Cidade de Serafins. Lá, construirá uma casa de repouso, contratando médicos e enfermeiros. Haverá um único quarto, para um único hóspede.

Dona Gertrudes, franzindo a testa, suspirou antes de refazer a primeira frase que lhe viera à mente:

- Quem será este hóspede?

A mulher passou a contemplar o relógio, que marcava meia-noite em ponto.

-Apenas construa – respondeu ela – o hóspede se apresentará a você, voluntariamente.

A dona do casarão meneava lentamente a cabeça:

- E eu vou pagar pela estadia desta pessoa? – perguntou ela.

- Não. E a pessoa ficará somente duas semanas. Depois, irá embora, mas esteja atenta ao seu retorno.

A anfitriã viu a mulher se retirando em direção ao quintal, com a Lua Crescente sobre si. Olhando de forma blasé por cima do ombro, a visitante concluiu:

- Mais uma coisa. Você terá de inaugurar a casa de repouso e receber seu paciente na última noite da Lua Cheia, assim que concluir as obras. Tão logo o sol se ponha.

A mulher atravessou o jardim e saiu pelo pequeno portão, desapareceu virando a esquina, debaixo do olhar de D. Gertrudes, ainda de pé junto à porta e segurando a maçaneta.

...

Dona Gertrudes ouvia outra balada triste no rádio ao lado da cama, junto do qual ficavam um cópo com água e comprimidos para dormir. Madrugada após madrugada era a mesma coisa:

- Quem é aquela mulher? Que estanho pedido era aquele? Como não consigo tirar isso da minha cabela? - se perguntava.

Quando o sol raiou, tomou uma decisão. Foi até uma corretora de imóveis e começou a agilizar a compra do imóvel. Chegou em casa cansada como nunca, deitando-se na cama e, finalmente, após dias, dormiu. Dormiu como há muito não dormia. Em doces sonhos, dançava e bebia com seu falecido marido.

Assim se passaram as semanas. Conforme a obra se aprontava, os sonhos se tornavam cada vez mais intensos.

A última Lua Cheia se aproximava.
...

O sol se punha. dona Gertrudez esparava em frente à casa de repouso, entre lojas, boutiques e cafés da movimentada rua de Serafins. Junto a ela, enfermeiros e uma cuidadora.

- Me informe as horas, por favor - pedou Dona Gertrudez a um dos enfermeiros.

Ele não respondeu a tempo. As luzes dos postes foram todas se acendendo, e veio um Chevrolet - 1915 vermelho sangue pela rua molhada devido a chuva que caíra durante o dia.

Dona Gertruzes arregalou os olhos quando viu a mulher que havia lhe procurado semanas atrás no banco elevado da parte de trás do carro. Ela vinha entre dois belos rapazes de smoking branco e flores-de-maio adornando o bolso de seus paletós. Beijava a ambos, mordiscando seus lábios entre gargalhadas e doses de champanhe que tomavam nas taças de cristal que traziam nas mãos.

O carro logo estacionou diante a casa de repouso. Auxiliada pelo motorista, a mulher desceu, afetada no andar, segurando parte do justíssimo vestido vermelho que trajava. 

- Então? – perguntou ela, com sorriso aos lábios e voz embriagada – onde fica meu quarto?

A cuidadora a acompanhou para dentro da casa, cuja porta ficou aberta. E, do lado de fora, Dona Gertrudez observava a cena, boaquiaberta, iluminada pelas lamparinas da rua e pela tênue Lua Cheia no céu.



Lamento de Tupã: Um Prólogo

São Paulo, 1949.

Isabela arfou quando se sentou na cadeira. Levou uma das mãos ao ombro direito, enfaixado como também seu dorso nu. Depois, se voltou para a máquina de escrever diante de si, pondo-se a datilografar:

Caro professor Strauss:

Escrevo estas linhas a fim de concluir meu relato sobre a experiência na Caverna das Amendoeiras. Considerando suas constantes advertências acerca do que considera ser excessiva credulidade minha, ressalto, com veemência, que as letras a seguir são a tradução mais direta que pude expressar de tudo que eu mesma ví e ouvi.”

A mulher pegou o caro cigarro parisiense sobre a mesa. Levou-o aos lábios e tragou saborosamente. Prosseguiu:

Os desdobramentos daquele inusitado trabalho de campo me trouxeram, para minha surpresa, da selva matogressense à São Paulo. Imagino que o senhor acompanhou, pelos jornais e pelo rádio, a catástrofe que se abateu sobre esta metrópole onde viveu e lecionou. Adianto-lhe, por esta razão, que, com exceção de escoriações já medicadas, estou bem.

Ela relaxou na cadeira, suspirando mais uma vez devido ao ombro direito. Tragou de novo o cigarro e se levantou em seguida, lançando um hobby de seda sobre seu corpo tatuado. Caminhou na direção da varanda do requintado quarto de hotel onde estava hospedada, contemplando a cidade: até onde a vista alcançava, via carros quebrados, bondes batidos, postes caídos e quarteirões inteiros sem energia elétrica.

A maior cidade dos homens agonizava debaixo de lama, lixo e água. Isabela deu outra tragada no cigarro, buscando alivio para o ombro e palavras convincentes para o que havia de relatar.


O flash da máquina fotográfica iluminou a igreja e o corpo do padre, ao chão e sob os pés do rapaz magro de jaleco branco:

- Parece ter havido luta – relatava o jovem ao senhor de bigode de morsa e casacão bege parado do seu lado – há marcas de tiros no teto. O assassino trespassou a vítima com objeto perfurante que parece ser uma lança, mas nenhum tiro o atingiu. As senhoras que vieram rezar ficaram chocadas ao chegarem e verem a cena. Não há suspeitos: as demais pessoas interrogadas só tinham elogios ao pároco, e não mencionaram nenhum desafeto.

- ‘Porca miséria’! – exclamou o velho, metendo a mão por baixo do chapéu para coçar a própria cabeça – E os documentos dele?

- Mão há nada na casa paroquial sobre o tal padre. Documentos pessoais, fotos de família, nada.

- O assassino pode ter levado?

- Não há marcas de arrombamento, nem de que as gavetas foram mexidas. Também não foi levado nada de valor.

- Então o padre não tem documentos, nem nada que o identifique?

- Bem, ele é famoso no bairro...todos gostam do Padre Honório.

- Ok, mas...nada sobre ele em forma de documentos?

- Não, senhor.

- ‘Porca miséria!’

- O que faremos senhor?

Gulliver, o velho Inspetor, olhou em volta enquanto coçava de novo a cabeça. Depois, estalou o dedo, chamando o homem que tirava fotos do local do crime.

- Recolha tudo. Por hora, lacre o local e voltemos para a Inspetoria.

Os policiais terminaram o serviço e entraram na viatura, deixando uma fita zebrada nos portões da igreja. Foram embora sem notar o homem que, abrigado debaixo de uma marquise do outro lado da rua junto a um vaso de barro, protegia-se do frio com uma manta de pinturas tribais. O chapéu de palha com abas largas impediria visão de seu rosto, mas as chamas do cachimbo que aquele homem acendeu revelaram o semblante preocupado em seu rosto.


Francisco acordou com o cheiro do lixo invadindo seu nariz. Se levantou, recostando o ombro numa das parede daquele beco escuro enquanto tapava os olhos diante das luzes de neon do outro lado da rua.

Seu estômago roncava. A lufada do vento noturno, que soprou pelo beco, o fez perceber estar sem camisa por baixo do roto paletó branco que vestia. Apalpando o próprio peito, sentiu uma cicatriz cortando seu lado esquerdo.

O estômago roncou de novo.

O que aconteceu comigo? - perguntava-se ele.



domingo, 12 de abril de 2020

Picê, a deusa Tupi da poesia

O espelho refletia a donzela de cabelo negro. Picê sequer contava as vezes em que olhava seu semblante ansioso, ali refletido.

Ela acendeu então mais um cigarro, pondo-se a caminhar, descalça e em seu vestido de fenda generosa, entre os antiquários espalhados pelo outrora suntuoso saguão. Tragou, suspirou, expirou e bufou.

A fumaça expelida de seus lábios, onírica e com vida própria, saia pelas janelas, espalhando-se mundo afora.

Quanto a Picê, terminado o cigarro, voltava ela para diante do espelho...




sábado, 21 de dezembro de 2019

Picê, a deusa da poesia

Na aurora da Criação, quando mesmo o grande avô Nhanderuvuçu ainda caminhava entre os homens, surgiu uma donzela nascida da primeira brisa do por-do-sol. Ela ia e vinha livremente pelas aldeias, e toda vez que passava, punha nas almas um sentimento arrebatador.

A donzela soprava junto a nuca dos primeiros homens e as primeiras mulheres, e imediatamente eles e elas se punham a entoar cânticos e expressar rimas. Rimas para amar, para rir e para guardar o conhecimento na forma de cânticos sagrados, doutra forma impossíveis de se registrar e transmitir.

Com o tempo, os ñanderu  (xamãs e sacerdotes guaranís) entenderam que a misteriosa donzela era uma Nhande (alma sagrada...deusa) surgida da própria Existência, assim como Tupã, Jací e outros dos primevos. Veio para entregar aos homens a poesia, e foi chamada de Picê.

Até que Tupã desapareceu entre as estrelas, entristecido com a maldade dos homens.

No ínicio, a caprichosa Picê encantou-se com os homens de pele branca e com os homens de pele negra que eram trazidos a força. Um tanto confusa, mantinha lembranças turvas de ter soprado seu encanto também entre eles, e de ser chamada por outros nomes. Foi e veio também entre eles, pouco se importando com os horrores da nova era.

Para Picê, aquela mistura lhe foi como uma grande orgia. Mas os séculos passaram e uma tristeza lhe tomou: ao contrário dos guarani, que lhe conheciam, honravam e até presentearam com um nome, o Mundo dos Caraíba lhes ignorava. Quanto mais se poetisava, mais se lhe ignorava.

Isto seu orgulho não podia suportar.

A donzela então ergeu seu refúgio na Cidade do Rio das Almas, o inferno do Anhangá, que os Caraíba chamam de São Paulo. Cheia de amargura, enclausulou-se no saguão de uma outrora gloriosa mansão, na qual noutros tempos empreendiam constantes saraus.

E desde então, vestida austeramente, como uma velha rancorosa, a deusa de aparência jovial passa os dias naquele mansoléu de paredes carcomidas. Entregue a cigarros, chicaras de café e livros, murmura diante de espelhos acerca do oblivio dos homens com relação as poesias que eles mesmos escrevem, após receber seus doces sopros junto a alma.

Picê, arte de Vinicius Galhardo.


Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até al...