sábado, 5 de dezembro de 2020

Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até ali, entre eles Jepê, pararam antes dela, observando-a. A moça estava irreconhecível, com o corpo coberto por pinturas rupestres de diferentes bichos da mata. Ela avançou, e logo aqueles homens a perderam de vista, desaparecendo na escuridão da caverna onde entrara.


 Três daqueles quatro caçadores voltaram para a aldeia...


Lá dentro, turo era breu. Isabela se lembrou da advertência do Nhanderu: "não leve tocha". Fechando os olhos como lhe fora orientado, Isabela “viu” uma coruja voar para diante de si. Ao abri-los, contemplou com nítidez o túnel irregular, que parecia levar a uma câmara no fim do mesmo. As paredes eram negras e úmidas, adornadas com rostos semelhantes aos da entrada. Pinturas rupestres típicas das tribos da região cobriam as paredes: não conseguiu entender o que diziam, contudo. O teto, coberto por teias de aranhas, era ainda mais enegrecido.


Um Morcego então veio à mente de Isabela. Tudo ficou escuro de si, diferente de como via como Coruja, mas as ondas de movimento como de um sonar eram claramente discerníveis. Ao perceber as ondas em torno de uma grande seta vindo em sua direção, a mulher se lançou ao chão.


Respirando para conter seu coração acelerado, ela se levantou. Avançou na ponta do pé e segurando a respiração, mas gritou ao cair num poço estreito. Do fundo dele, podia ouvir o sibilar das serpentes. Logo a Aranha tomou o lugar do Morcego entre suas visões e pensamentos, e, escorando-se com mãos e pés nas paredes do buraco, a mulher evitou a queda e escalou para fora.


- Isso aqui não é brincadeira. Nem mito! - sussurrou para si mesma.


Mais alguns passos, e lá estavam dúzias de flechas enterradas num novo chão, agora, de terra. Isabela tomou cuidado ao respirar, a fim de evitar o odor dos corpos decompostos, estrteitando os olhos ao não sentir tal odor de forma alguma. Depois, olhou para cima, e notou uma vegetação simples com vários cipós cobrindo o teto.


- Flechas disparadas do teto. Não faz sentido. De onde viriam? - questionou-se. Olhou mais uma vez, e notou que os corpos e as setas não obedeciam a um padrão, estando espalhados aleatoriamente pelo terreno.


- Qualquer pessoa que pisar ali será atingido!


O Macaco surgiu diante dos olhos dela, como a Aranha anteriormente. Isabela tomou fôlego e deu um salto humanamente impossível em direção aos cipós. Pulando de um para o outro, atravessou o chão de flechas e chegou ao outro lado, na entrada do que parecia uma câmara.


Antes de adentrar, ela tomou uma das flechas.


- Não é dos Nhandeva...mas não reconheço este tipo de flecha como de nenhuma outra nação. Isto...isto não é pedra lascada, nem ferro ou cobre...


Largando a flecha ao chão, Isabela finalmente entrou na câmara. Era circular, repleta de teias de aranha, com desenhos em suas paredes. Um raio de sol adentrava diagonalmente por uma brecha no teto, iluminando um altar feito de pedra esculpida.


 - A Ânfora devia estar sobre este altar...


Isabela se aproximou quase que na ponta dos pés, quando sentiu o espetar em seu pé:


- Como um homem branco consegiu entrar aqui? - ela se perguntou encontrando no chão um canivete suiço novo e em ótimo estado.


Um barulho repentino interrompeu seus questionamentos. De várias partes das paredes viraram-se blocos de pedra como se fossem portas, construídas de forma que ficavam indistinguíveis do restante das rochas. Daquelas portas surgiram nativos de aspecto empalecido e cabelos longos, vestidos com roupas pretas e cinzas que pareciam sacos cobrindo sua pele. Nenhum era jovem, mas aquele que parecia o mais velho dentre eles portava um cajado:


- Quem lhe deu o poder para chegar aqui? - perguntou ele, em perfeito português, aproximando-se de Isabela.


A menina, por sua vez, tentava futilmente ocultar o fascínio sob olhar audácioso, pensando em cada palavra antes de responder:


- Jaçaranã, da aldeia Nhandeva, sagrou o meu corpo e me concedeu o poder para adentrar a este Templo.


- E por quê? - perguntou o ancião.


- Uma maldição caiu sobre a aldeia. Ele suspeitou que o Santuário tivesse sido profanado, Mas como os ancestrais Jaguarí ordenaram que nenhum Nhandeva poderia aqui entrar, me ofereci para descobri o que estava ocorrendo.


Os homens se entreolharam. Depois, o ancião se voltou para Isabela. 


- E o que sabeis sobre os Jaguarí?


- Memoráveis, guardiões dos segredos e da ciência, que desapareceram a tempos incontáveis!


Os homens se aproximaram do ancião e falaram com ele num idioma que Isabela jamais ouvira. O velho escutava-os, mas mantinha contato olhos nos olhos com ela. Após ouví-los por alguns instantes, ele ergueu a mão direta, calando-os de forma imediata.


- Ela fala a verdade - decretou o ancião - A jovem caraíba odeia mentira. - O homem ficou frente a frente com Isabela - Vamos lhe indicar qual caminho seguir para descobrir o que aconteceu - disse ele.


Isabela, que ouviu o barulho de mais uma parede se abrindo, arqueou as sombrancelhas e moveu os lábios para agradecer: 


- Contudo, devo adverti-la. Você vai descobrir verdades que tanto ama e busca. Mas elas vão machucá-la de forma tão profunda que terá de reexaminar seu coração - decretou o ancião, impedindo Isabela de agradecer.


Os homens então se voltaram para as passagens nas paredes, retornando de onde vieram diante de uma Isabela boquiaberta, iluminada pelo sol que descia pelo teto.


- Esperem - clamava Isabela - Quem são vocês? Quem construiu isto?


A resposta veio enquanto uma das passagens se fechava: 


- Nós, os memoráveis guardiões do segredo e da ciência, como tu mesma o disseste.


...

Êxtasiada, Isabela atravessou o corredor com a Coruja fazendo-a enxergar no breu total. A porta daquele corredor, que levava para a floresta do lado de fora, foi fechada da mesma forma como aquelas outras que trouxeram os homens na câmara.


Ao encotnrar o sol, a moça cerrou os olhos e pôs o antrebraço sobre eles. Parando ao lado de uma árvore, ela se escorou, piscando até conseguir reabrir permanentemente os olhos. Ao se recuperar, logo percebeu a clareira com um jipe e três homens cablocos conversando com um nativo.


A Cobra surgiu diante de si, e ela rastejou pelo mato até a clareira.


- Ora Jepê, então quer dizer que você está com medo de uma moça branca pintada? - perguntou um dos cablocos, ente colheradas de comida, sentado à frente de um caldeirão.


- ‘Oceis’ ‘menospreza’ o Nhanderu - respondeu Jepê, em português.


- Ele sabe falar português? - questionou Isabela, em pensamento, ouvindo a conversa do mato.


- E o que ela pode fazer? - perguntou o outro homem, atrás de Jepê e arrumando alguma coisa na carroça.


- Não sei - respondeu o índio - Mas por via ‘das duvida’, quero acertar logo nosso preço. É melhor não arriscar.


O homem à frente de Jepê levantou-se do banquinho e pegou um março de dinheiro do bolso. contou e entregou parte do bolo. O índio, por sua vez, olhava admirado para aquele pedaço de papel. Ainda assim, questionou:


- Sim, mas não é só isso.


- E o que mais ‘ocê’ quer? - perguntou o homem que lhe dera o dinheiro.


- Esqueceram do trato? - protestou Jepê: - Eu dizia onde ficava o templo. Em troca ‘ocês’ me ‘dava’ o tal do dinheiro e me ‘tirava’ desta terra.


Isabela cerrou furiosamente seus lábios. Se lembrou do bilhete de sua mãe...


- É verdade! - concordou o homem que estava sentado comendo, cuspindo comida pela boca antes de concluir: - Combinamos de tirar você daqui.


Um tiro.


- Pronto, já foi tirado daqui pra Terra-dos-pé-Junto - disse o homem que estava atrás do índio, após encontrar o revólver que procurara na carroça.


Isabela expirou com ódio. O Macaco surgiu diante dela de novo.


- Mas diacho! - reclamou, apalpando os bolsos, o homem que estava sentado, após colocar o prato de comida no banquinho e pegar de volta o dinheiro em cima do cadáver de Jepê.


- O que houve ?- perguntou o outro.


- Perdi meu canivete!


- Achei pra você!! – surgiu Isabela, saltando do matagal e arremessando a peça no olho do sujeito. Ela correu em direção a ele, e na trajetória chutou o revólver na mão do outro jagunço. Com a luta do uka uka, que aprendera em outras tribos e noutras ocasiões, tomou o braço do homem com o olho cavado do canivete, fraturando-o com uma chave. Depois, saltou para para trás, agachada em selvagem posição de combate, com uma das mãos e nenhum joelho no chão.


O terceiro jagunço correu para a carroça. Ao mesmo tempo, o jagunço que matara a Jepê tentou sacar seu facão. Isabela se ergueu, segurou o pulso dele e atingiu suas costelas com uma joelhada. Por fim, arrebentou-lhe o nariz uma cotovelada.


- VAI, VAI CARALHO, VAI! - disse o jagunço de braço quebrado, que subira com dificuldade na carroça. O outro patife, que subira antes, não pensou duas vezes.


Arrebatada por um impulso, Isabela correu, correu com todo seu ímpeto, atrás da carroça. Vendo uma onça diante de seus olhos, fulminou a distância entre si e o veículo.


- QUE DIABO É ESSA MULHER? - perguntou o condutor da carroça.


Em igual desespero, o outro pegou seu revólver e disparou para trás. Antes do disparo, Isabela já havia saltado sobre a parte de trás da carroça, alcançando-a. O solavanco devido ao pedregulho sobre o qual uma das rodas passou fez o jagunço errar o tiro, e lançou Isabela para fora da carroça numa ribanceira ao lado. A carroça se perdia ao longe, enquanto Isabela caía, batendo com a cabeça num dos galhos das árvores espalhadas pela ribanceira e tombando às margens do rio lá embaixo.

...


Isabela voltou a si na beira do rio, com o sol quemando-lhe o rosto. Pôs a mão na testa, resmungando devido a dor, e se arrastou até a água, levando-a à boca e depois à testa suada. 


- A aldeia! - ela disse para si mesma, erguendo-se na areia.


Isabela levantou e correu pela margem do rio, que sabia levar a um córrego o qual chegava próximo de onde os Nhandeva viviam. O pulmão parecia saltar pela boca e as batatas da perna clamavam: nenhuma onça, coruja ou morcego surgiram de novo diante de seus olhos.


Minutos depois, podeia ver as ocas da aldeia.


- Não, não, não… - repetia Isabela, caminhando entre os corpos espalhados pelo chão com lágrimas nos olhos e as mãos na cabeça.


O grito da mulher ecoou pela mata.

Dia seguinte


- Srta. Bittencourt! Já de volta? - perguntou o recepcionista alto, gordo e calvo, ao ver Isabela entrar na pousada com mochila de campanha nas costas.


- Infelizmente... – ela respondeu, ofegante e cabisbaixa.


- Tá aqui – o recepcionista entregou-lhe uma chave, notando então o galo na cabeça e o suor nas roupas cáquis de exploradora que ela vestia – depois ‘ocê’ acerta.


- Obrigada, Ferreira.


Isabela foi direto ao chuveiro, após jogar a pesada mochila ao lado da cama. Se despiu e entrou deibaixo da água, ensaboando-se insentamente com os olhos fechados enquanto deixava a água fria cair-lhe sobre o rosto. Após profundo suspiro, abriu os olhos e abaixou a cabeça, procurando a tinta dos Nhandeva a correr-lhe pelas pernas.


- Essas pinturas não saem com água? - ela se perguntou.


Isabela esfregou mais, e cada vez mais intensamente. Nada. Sequer crostas de tinta seca. Era como se as pinturas estivessem marcadas pela sua pele, como tatuagens.


Após tentar oturas três vezes, Isabela saiu do chuveiro e parou iante do espelho, nua, contemplando-se vestida daquelas pinturas antigas e sagradas.

...

Três dias depois


Ruborizados, os passageiros se cutucavam e cochicavam pela área de embarque do Aeroporto Santos Dumont. Apontavam sutilmente para a mulher de pinturas rupestres expostas pelas partes de sua pele que o vestido blazer riscado, costurado em Paris, não escondia.


A indiferença narcisista da moça itensificou o choque.


- Bom dia Anacleto - saudou Isabela, saindo do aeroporto e indo de encontro ao motorista de sua mãe, para o qual enviara telegrama pedindo que a buscasse.


O empregado procurava palavras.


- O que aconteceu, Anacleto?


- Senhorita, eu não quis falar sobre isso por telegrama quando me contatou em São Paulo e...


- Vá direto ao assunto!


Ele respirou fundo:


- Sua mãe senhorita. Ela...ela...ela faleceu há duas semanas. E era impossível entrar em contato com a senhorita no Mato Grosso.


Isabela tentava manter o olhar blazé.


- Meus pêsames - disse Anacleto, tomando a pouca bagagem das mãos dela e depositando-a no carro, enquanto a jovem, atônita, sentou-se no banco de trás. - Para onde senhorita? - ele perguntou, após entrar o carro.


- Para o cemitério.


O veículo seguiu pelas estradas da Capital Federal, enquanto Isabela olhava pela janela com seus olhos amendoados refletindo o por do sol. Ao chegar no cemitério, comprou flores. Após minutos de caminhada, encontrou o tumulo de sua mãe ao lado do de seu pai, perante os quais se agachou. O vento soprava a seus cabelos, e os olhos dela finalmente lacrimejaram:


- Nenhum mundo é perfeito. Era disso que falava, mamãe?


Isabela chorou, tanto quanto pode. Depois, enxugou as lágrimas. Deixou ali as flores. E caminhou em direção à saída do cemitério.



quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Lamento de Tupã - Jururá-Açu e os Segredos sob a Terra

 - Dá-nos de beber! Dá-nos de beber!


A virgem veio na direção daqueles murmúrios. Eram ecos cavernosos, que subiam pela grama e pelos arbustos espalhados no pé da serra:


- Dá-nos de beber! Dá-nos de beber!


Ela se abaixou, e passou a mão pela grama. Depois, colocou os cabelos negros do lado oposto de um dos ouvidos, aproximando-o do chão e afastando a cabeça em seguida.


- Q-quem são vocês? – perguntou a donzela, aproximando os finos lábios da grama ao chão.


- Dá-nos de beber! Dá-nos de beber! - repetiam as vozes lá embaixo.


Ela se levantou. Com os braços semiabertos, abriu as mãos. Fechou os olhos, inspirando e expirando suavemente: a cada inspiração, o orvalho da madrugada surgia, e a cada expiração, ele caia sobre a grama, sobre as folhas e sobre os arbustos pela serra.


Quando o orvalho tomou toda a terra, os gemidos cessaram.


- Vocês ainda estão aí? – ela perguntou.


- Daqui não podemos sair! - responderam.


A virgem suspirou, e fechou de novo os olhos, voltando a inspirar e expirar numa intensidade maior que se percebia no mover de seus desnudos seios. A expiração trouxe intensa chuva que, diferente do orvalho, desabou sobre a serra. Enquanto caia a tempestade, a moça movia horizontalmente os dedos das mãos, como se estivesse revirando o solo duro para que a chuva penetrasse mais e mais na terra.


Os ecos cavernosos voltaram a ser ouvidos. De lá de baixo, mãos carcomidas abriam caminho pelo chão fofo, surgindo feições distantes e em agonia. Algumas pareciam pertencer a homens, outras, a veados, antas ou tatus. Todas carcomidas, porém translúcidas, se erguiam do chão molhado enquanto uma fumaça de odor sepulcral subia aos céus.


Ela então se voltou a eles, com sorriso cândido.


- Ele ainda está preso! – disse um deles, apontando para uma protuberância mais adiantada na serra.


Ela se virou para o local indicado, e cerrou a mão esquerda. A tempestade ficou mais intensa. Com a mão direita, inclinou o vento e a chuva para a protuberância da serra. A pedra foi transformada em lama, e revelou uma caverna cuja escuridão veio sendo dissipada, como se uma tocha brotasse das profundezas da serra.


Os gemidos dos mortos vivos imaediatamente retornaram, não mais cavernosos, mas em tom de êxtase e intercalados com assobios. O som, que tomou toda a serra, pôde ser pavorosamente ouvidos nas aldeias mais distantes.


Finalmente, ele surgiu do fundo da caverna, e a fumaça emanada pela chuva que caia-lhe sobre o corpo subiu até o mais alto céu.


Todos retiraram-se dali, seguindo aquele que brotou das profundezas da serra, não sem antes beijarem as mãos e os pés da virgem. Somente ela ficou na serra, correndo em direção à caverna, excitada por curiosidade explítica em sua face.


Ela ficou lá embaixo até perder os sentidos de quanto tempo passara nas entranhas do Mundo Subterrâneo, até ser interrompida pelo primeiro relâmpago que caiu das nuvens formadas sobre a serra. Se assustou como nunca antes em sua Eternidade: olhou para cima, e mesmo de lá das profundezas das trevas da Mundo Subterrâneo, podia contemplar os céus.


A donzela gritou pela primeira vez.


A subida foi dolorosa, após gritos de horror.


Sobre a serra, de frente para a caverna aberta, seria possível vê-la surgindo. Com uma outra nova chuva caindo sobre si, ela urrava enquanto suas delicadas pernas e braços tornaram-se enrugados, os longos cabelos negros caíram de sua cabeça e o ventre esbelto enrijeceu-se, tornando-se esverdeado. Os redondos e pequenos seios desapareceram. Das costas, brotou indestrutível casco. E o rosto de traços encantadores tornou-se a cabeça de uma tartaruga.


A imensa Jururá-Açu ali clamou, desesperada. As nuvens no céu se dissiparam. E o sol nascia ao horizonte, lançando a sombra de sua nova e gigantesca forma sobre a entrada da caverna na serra.

 


São Paulo, 1949


Ninguém pode desconectar-se assim com o mundo, mesmo que tenha escolhido outro – dizia o bilhete que Isabela encontrou quando abrir seu diário. Tinha ouvido as mesmas palavras da boca de sua mãe, antes de sair de casa batendo a porta e jurando não mais voltar.


O sol da manhã brilhava sob a aldeia dos Nhandeva. Isabela, que havia se levantado junto com seus anfitriões, devolveu ao diário o bilhete que sua mãe lá deixara, encontrado em seguida um retrato do pai. Após passar carinhosamente o dedo sobre a fotografia, retornou à página marcada do diário, pondo-se a anotar que ouvira na noite anterior. 


“Não hã, dentre as muitas etnias grosseiramente generalizadas de ‘indígenas’, tribo mais nobre e enigmática que os Jaguarí. No passado homens de grande ciência, sabedoria e poder, foram os guias de todas as crias de Nhanderuvuçu sobre a terra, numa época em que a guerra já não existia e a caça, pesca e agricultura alimentavam a todos. Foi assim até mesmo nos momentos difíceis, quando os temíveis espíritos malignos de Tau - espírito da escuridão - cobriram a terra com as trevas, e quando Luzizu trouxe a morte aos homens. Para ela (a morte) os nobres Jaguarí deram propósito e explicação.


Mas a Era dos Jaguarí se encerrou com o Dilúvio. Eles guiaram alguns escolhidos de outras tribos até Juruoca, a enorme caverna que levava até o centro da terra, lacrando-a e protegendo os homens da morte pelas águas. Quando estas recuaram, os Jaguarí trouxeram as tribos de volta a Pindorama para, então, desaparecerem, entristecidos, cabisbaixos e decepcionados.


Nenhum Pajé ou índia anciã jamais me explicou a razão deles terem abandonado as demais tribos e desaparecido de forma tão melancólica. Contam apenas que, após a partida dos Jaguarí, as tribos aprenderam as artes da guerra e passaram a se odiar, lutando por território onde a caça e a pesca fossem abundantes.


Isabela ainda se lembrava da noite anterior, quando ouvira aquela história narrada cerimonialmente pelo Nhanderu em torno da fogueira no centro da aldeia. Estava seminua, pintada à moda nhandeva e relaxadamente sentada próxima ao fogo. Ouvia ao Nhanderu enquanto saboreava um peixe assado temperado de forma que nenhum gourmet parisiense poderia fazer. Enquanto escutava, calculava como traduzir tamanha rizqueza para sua tese de doutoramento: não ousava dar à narrativa qualquer peso de fato, mas, por tudo o que já vira habitando entre os nativos – coisas que nunca teve coragem de relatar a seus professores na França – mantinha sua mente acadêmica dosada pelo fascínio.


Foi quando o grito de horror ouvido do lado de fora da oca trouxe a mulher de volta dos pensamentos.


Na parte central da aldeia, uma jovem nhandeva e seu irmãozinho choravam de desespero, relatando aos seus irmãos a podridão das frutas nas árvores e os peixes, fedorentos, a boiar na superfície do riacho alí perto. Isabela, que entendia perfeitamente o idioma, se aproximou enquanto os aldeões questionavam ao velho e sábio Nhanderu o que estaria acontecendo.


O velho pajé proferiu a palavra em tupi, e os aldeões recuaram, com olhos esbugalhados, tapando as mãos com as bocas.


Isabela não compartilhou das expressões de horror, mas observava com olhos zelosos a cena. Já tinha ouvido sobre o artefato que o Nhanderu acabara de mencionar. Em tempos imemoriais, um ancestral Nhandeva teve de lutar contra um vento noturno que causava arrepios. Domando as bestas da mata, tornava seus olhos vermelhos e fazia o fogo se alastrar. A morte lhe antecedia e lhe seguia em sinais de folhas secas, frutas podres e peixes mortos. O nome dele era Anhanguera, a besta do deus da morte Anhangá.


Um valente guerreiro matou bestas dominadas pelo Anhanguera, três vezes, três delas. Anhanguera reconhecia o valor de quem o vencia por três vezes, e nunca mais atacava nem ao vencedor, nem aos seus. Mas, quem deteria o Anhanguera? Continuaria ele a espalhar a morte?


Aquele ancestral Nhandeva encontrou um Jaguari, talvez o último deles entre os homens. O Jaguari esculpiu uma Ânfora, marcada com pinturas sagradas, que poderia aprisionar o vento assombroso. Pondo-se entre o monstro e uma pobre aldeia a ser consumida, o valente guerreiro aprisionou Anhanguera na Ânfora e, sob orientação do Jaguari, a guardou numa das antigas cavernas que eram morada dos misteriosos ancestrais. A Caverna das Amendoeiras.


Desde então, a aldeia guarda a caverna. Não tem permissão para entrar lá: é tabu o pelo ancestral que venceu ao Anhanguera. Isto porque só os Nhandeva poderiam sobreviver se lá. Qualquer outro que o fizer, este morrerá, por não conhecer os mistérios da Caverna.


- Alguém tirou a Ânfora da Caverna das Amendoeiras - sentenciou o velho pajé.


- Só nós sabemos como entrar e sair. Só nós podemos entrar. Vou até lá e entender o que aconteceu - disse o Cacique, enquanto os caçadores e guerreiros da aldeia se movimentam para pegar suas armas.


- Não - ordenou o Nhanderu - É tabu - respondeu, sentando-se pesarosamente num tronco de madeira, apoiado por seu cajado.


- Então porque os segredos do templo foram-nos revelados através do senhor e dos outros Nhanderu, seus antepassados?


O ancião direcionou um olhar paterno ao Cacique:


- Para que nós sejamos justamente os guardiões do santuário - respondia - e para testar nossa honra e sabedoria, não usando este segredo de forma leviana. Pelo mesmo motivo, não posso consultar os ancestrais para saber o que se deu. Nem eles podem entrar lá.


- “São apenas mitos criados para impedir a entrada desta e de tribos rivais. Que poder de persuasão!” - pensou Isabela consigo mesmo. Logo depois, e devido ao mesmo pensamento, os olhos dela brilharam de excitação:


- Eu não sou Nhandeva! - gritou mulher, ousadamente, distante que estava do Nhanderu cercado pelo Cacique e demais guerreiros.


A aldeia imediatamente se voltou para Isabela, “a brava e gentil donzela branca de olhos de amêndoa”.


- Mas entrar no Caverna das Amendoeiras é coisa para os mais valentes guerreiros – retrucaram os mais novos.


- E nossos lugares sagrados não são para caraíba! - arremataram os mais velhos.


- A minha entrada não quebra o tabu. Basta vocês me prepararem para o que devo enfrentar – argumentou Isabela.


A tribo entrou em alvoroço.


- Não podemos confiar nos olhos de amêndoa! - disse Jepê, um dos caçadores da aldeia - Ela pode roubar a Ânfora ou nos fazer algum mal - acusava o índio, recebendo concordância de alguns.


 - Talvez seja a única saída! - diziam outros.


- Vocês não sabem o que dizem! Como esta mulher branca entraria e passaria na caverna? - insistia Jepê.


O Cacique, emburrado, concordou com o caçador:


- É verdade. Ela não conseguirá.


- Conseguiria se o Nhanderu lhe desse orientasse - respondeu um dos anciões, logo seguido por outros - É verdade. Sim, é verdade!


- Isso é loucura! - questionou Jepê, caminhando em direção a Isabela e olhando-a de cima a baixo - Não podemos confiar nosso destino a esta mulher banca!


- Em meu coração, sou uma de vocês - respondeu Isabela para Jepê, fitando-o de forma corajosa.


 - Ela jamais nos deu motivo para duvidar de sua palavra – disse uma anciã, a mais velha dentro todos ali. Ela tinha acabado de sair de sua oca, o que raramente fazia, e se aproximava enquanto os demais abriam caminho.


A tribo se voltou para o Nhanderu que, por sua vez, direcionou o olhar para o Cacique o qual, finalmente, ainda que relutando, concordou balançando a cabeça.

 

- Vocês são loucos! – murmurou Jepê.


O Nhanderu se virou para Isabela, chamando-a com um dedo. Ela obedeceu, enquanto os demais aldeões fizeram um círculo entre eles dois. 


- Preparem as pinturas, pois temos muito a fazer no corpo dela e pouco tempo - ordenou o pajé.


- Quais pinturas faremos no corpo dela? – perguntaram.


- Todas – respondeu ele.




Os Segredos sob a terra (cont.)

 Isabela se aproximava da Caverna das Amendoeiras, vindo pelo matagal de folhas escuras e secas. Os quatro caçadores que a escoltaram até al...