Aurora dos Tempos.
Um relâmpago despencou dentre as estrelas. Água jorrou acima da copa das árvores com o impacto dos corpos que caíram no rio. Os abutres sobre os galhos se afugentaram.
Debaixo da água à fervilhar, um dos corpos tentava se desvencilhar da mão que segurava-lhe o pescoço. O olhos de fogo em sua face pintada como uma caveira branca iam se apagando enquanto se debatia. Os abutres assistiam em galhos mais distantes e, debaixo deles, as almas entre os arbustos gemiam e assobiavam.
A água então parou de se agitar. Depois, de fervilhar. Somente uma fumaça subia dela.
- Você conheceu o ciclo da existência e dominou sobre ele - disse o deus forte e nu, com a mão ainda no pescoço do afogado - Nascer, crescer, envelhecer, morrer. Usou sua sabedoria para assombrar aos homens e atormentar os seres viventes, tirando-os do ciclo, levando-os à morte, trazendo-lhes agonia. Agora, eis aqui seu túmulo, onde o fogo de sua ira contra os homens não mais arderá.
Um relâmpago se formou em meio as águas, e o deus que recitara aquelas palavras, cuja face ficara oculta na penumbra daquela noite, retornou para os céus.
As almas em redor que gemiam, gemeram mais alto. As que assobiavam, assobiaram mais agudo. E correram, sedentas, até a água do rio onde o cadáver jazia.
Um farfalhar de folhas denunciou o retorno dos abutres, que trouxeram consigo corujas e urubus. O funeral havia terminado. E daquele dia em diante, o rio seria conhecido como Anhangabaú, o bebedouro das assombrações.
...
São Paulo, Março de 1949
O relógio do edifício Mappin batia meia-noite. Djaru, que chegara desapressadamente pouco antes, parou sobre o Viaduto do Chá. Arriou no chão o balaio cilindrico que trazia por uma alça de couro e, na 12° baladada do relógio, tirou de dentro um vaso de barro no mesmo formato do balaio.
Não demorou para que eles surgissem, vindo de ambos os lados do viaduto. Trôpegos, acinzentados e rotos, se aproximavam entre gemidos e grunidos. Djaru desembocou o vaso e se afastou, se sentando ao meio fio enquanto tirava o chapéu de palha de aba larga que cobria sua cabeça. Enquanto os mirumbundos bebiam, o índio abriu a sacola artesanal que trazia consigo, sacando de dentro dela um longo colar de contas negras, redondas e idênticas. Dedilhou-as sem pressa.
Após beberem da água dentro do vaso, as almas se dispersaram em silêncio. Com o Viaduto deserto, Djaru se levantou, serenamente como chegara, indo em direção ao vaso. Guardou-o no balaio e o pôs de volta às costas. Depois, desceu o viaduto, recordando a conversa que tivera horas antes.
- Pedi tua presença, e tu veio por mim...- ela saudou.
Djaru tentava manter os sentidos ao ouvir aquela voz, diante da deusa de olhos verdes que emergiu da piscina de água natural.
- Deixei tua prenda na entrada – respondeu ele.
- E já te permitirei encher o vaso. Mas há outra coisa...
Janaína caminhou nua pelo oásis artificial ao redor da piscina, exibindo a exuberancia curvilínea de seus quadris e seios.
- Te ouço – disse Djaru, tentando desviar das curvas, dos seios e dos quadris dela. Os cabelos de Janaina moviam-se sozinhos, como se ela ainda estivesse dentro da água, e era para neles que o índio se concentrava.
- Três Almas violaram meu lago e apavoraram minhas Vizitas. Estavam descontrolados pela Sede. Tive que gritar para lançá-los fora…
- Vou guiá-los – prometeu Djaru, que voltou a si quando chegou ao terreno baldio.
Adentrando pela trilha ladeada por árvores, chegou à oca no centro do terreno. Lá dentro, pendurou o colar de contas na parede e estendeu uma esteira ao chão, sobre a qual se sentou. Depois, encheu uma cumbuca com água, colocando-a diante de si. Por fim, sacou de dentro da bolsa um chocalho e um cachimbo, passando então a selecionar ervas.
Aceso o cachimbo, ele tragou demoradamente. A fumaça encheu a oca. Depois, assobiou na frente da água.
- Vosmicês que invadiram a Lagoa da Iara, eu os chamo!
Ele assobiou mais três vezes, e as Almas Penadas se aproximaram do terreno baldio. Cambaleavam entre as árvores na direção da oca, que resplandecia diante daqueles olhos mortos.
Djaru, por sua vez, abriu seus próprios olhos. Rotos e acinzentados, um deles tinha o braço evidentemente quebrado, além de um buraco no peito. O outro, nariz e maxilar deslocados. O terceiro, o crânio esmagado.
Djaru se preparava para recitar uma oração diante da água, mas deteve-se com uma respiração pesada de ira. Via nítidamente o sangue vívido e fresco nas mãos deles. Com os dentes cerrados, o índio se pôs de pé e chutou a cumbuca de água, sacando depois o chocalho. O Cântico Fúnebre que entoou em seguida foi concluido com um movimento de braço, cruzando diagonalmente o ar com o chocalho que segurava.
As Almas Penadas gritaram, setindo um rimbombar em seus ouvidos, e viram Djaru de pé acima deles na oca, enquanto desabavam imediatamente no Inferno.
...
2 horas antes
A estação foi tomada pela fumaça quando o trem parou. Djaru olhou para o relógio pendurado na parede, conferindo ser 23:06. Dos vagões, primeiro saíram os passageiros, alguns sonolentos, outros neuroticamente agitados, todos desorientados, olhando em volta. Só então saiu o Maquinista: sujeito pálido de nariz pontudo inumanemente longo, péle enrugada e manchas vermelho-sangue no uniforme.
- Sempre pontual – disse o Maquinista, sorrindo com poucos dentes amarelados.
- Vindo de ‘ocê’ é um elogio – respondeu Djaru.
- É o meu trabalho.
- Cada um de nós tem seu “trabaio”. Trouxe a encomenda?
O Maquinista abriu ainda mais aquele sorriso de dentes amarelados.
- Claro!
Ele caminhou até o último dos vagões. Voltou logo, trazendo uma rústica garrafa de vidro tapada com rolha de madeira, com um líquido dourado dentro. Entregou-a a Djaru.
- O Curupira está na cidade... - revelou o Maquinista, enquanto Djaru guardava a garrafa dentro de sua bolsa
Ele moveu gravemente os olhos de sua sacola para o Maquinista:
- Qual dentre eles? - perguntou.
O Maquinista riu, e sua risada fez com que os pássaros do outro lado do trilho fugissem dos galhos das árvores onde repousavam:
- Eu não disse “um dos Curupira” – respondeu ele, mancando em direção a Djaru - Nem disse “um dos Kaapuã”. Eu disse “O” Curupira.
Djaru meneava lentamente a cabeça, franzindo a testa:
- Mas o que ele fez para ser condenado? – perguntou.
- Nada. - o Maquinista se virou para retornar à locomotiva - Veio por contra própria.
- E por que ‘ocê’ o trouxe?
- Você mesmo disse – respondeu o Maquinista, pela janela da locomotiva – “Trabalho!”.
A fumaça se dissipava, e entre mais risadas, a locomotiva começava a se mover. Ninguém havia embarcado. Na estação, só havia Djaru, de pé ao lado do balaio que trouxera nas costas, observando o trem ir embora.
...
3 horas depois
O arranha-céu tinha somente a lua sobre si. O topo do agonizante Edifício Martinelli, outrora imponente em meio à megalópole, exibia toda a cidade dos homens.
Dajru caminhou pelos decadentes cômodos daquele terraço, com a luz da lua a mostrar-lhe os corredores e as frestas sem portas nem janelas. A mesma luz lançou contra a parede sua silhueta de manta, chapéu de palha e colar de sementes de jabuticaba.
Ele acendeu um lampião, e a luz amarela, feia e artificial, iluminou o cômodo abandonado, revelando, nas paredes, pinturas rupestres em giz vermelho. Parando diante do gigantesco ninho que estava encostado na parede oposta à porta, o homem pôs a mão em sua sacola, tirando dela a garrafa com líquido dourado. Deixou-a diante do ninho e, de costas, se retirou do cômodo. Por fim, apagou o lampião. Esperou.
O barulho da rolha sendo retirada o fez fechar os olhos. E o som de um corpo caindo na palha o fez respirar aliviado.