A maioria das pessoas sabe que os índios eram ingênuos, bondosos e sem tecnologia. Viviam na perfeita harmonia com a natureza, formando sociedades igualitárias onde tudo era de todos. Os caciques eram lideres justos. Os pajés eram sacerdotes que mediavam as crenças daquela raça, cujas doenças e fenômenos da natureza, incompreensíveis para eles, eram tidos como manifestações primitivas de espíritos. A paz reinava naquele paraíso tropical de abundância, beleza e paridade. Até que os conquistadores portugueses chegaram com toda sua pérfida hiância mercantilista, destruindo a utopia dos “bons selvagens”.
O que a maioria das pessoas sabe não passa de um monte de baboseiras.
Nunca houve “índios”, termo generalista criado pelos europeus. Existiram guaranis, tupinambás, aymorés, goytacazes. Eles não eram ingênuos: criaram técnicas brutais de combate rápido e letal, táticas de caça e de camuflagem que beiravam a invisibilidade e conhecimentos sobre venefício cujas curas ou letalidade levariam escolásticos do Velho Mundo a perderem noites de sono estudando-as. Suas sociedades não eram igualitárias; variando enormemente de Nação para Nação - ou até mesmo aldeia para aldeia - hierarquias sociais estabeleciam fronteiras de acordo com a idade, gênero, talento, coragem e sabedoria. A liderança dos Caciques era baseada numa chefia tribal que freqüentemente descambava para o despotismo e vaidade. A paz nunca reinou entre eles, cujas tribos viviam em guerras sangrentas, constantes e com pouquíssimo espaço para misericórdia. E, numa disputa tão ferrenha por território, harmonia com a natureza era alienígena para povos que recorriam a incêndios na floresta para prejudicar inimigos.
Em suma, os “índios” formavam sociedades complexas, fascinantes, tensas e desiguais. Não deveríamos nos surpreender. Afinal eles são humanos, a despeito de todo tempo em que nossa empáfia cegou-nos para isso.
Como nos tem cegado para o conhecimento dos antigos Pajés.
Sua sabedoria era ensinada à beira da fogueira, pintada em cavernas, entalhada nas árvores e vivida através de rituais que existem desde antes das maiores potências europeias surgirem. Eram tradições estavam muito além de crendices primitivas de quem não compreendia o relâmpago ou a chuva. O conhecimento destes povos constitui-se de mitologias muito mais profundas.
E a verdade, como descobriram os originais habitantes desta terra, é bem mais chocante do que supõem os leigos, a menosprezá-los por tantos séculos.
Os mitos e suas versões
Antes de tudo existir, antes mesmo da existência, havia uma força, um vento incognoscível. Este poder, movendo-se antes do Tau - escuridão, vácuo - gerou a aña (ã-ni-á), que é a essência da alma e matéria prima de todo espírito. Segundo algumas versões do mito - e não há entre os “índios” nenhuma canonicidade, sequer a pretensão disto - este movimento não se deu em meio à inexistência, mas destruiu uma realidade posterior. De qualquer forma, foi a partir da aña que a força primordial gerou a matéria, numa forma maleável como o barro.
Os Nhande são as almas ancestrais que surgiram com a Criação. O primeiro deles foi o próprio Criador, Nhanderucuçu ("o grande avô), que surgiu por si mesmo como um vento no vazio antes da existência.
Nhanderuvuçu tornou-se ele mesmo o sol, pelo qual se responsabilizou. Como seu pdoer era grande demais para ser contido pela Criação, assumiu a forma de um poderoso cacique chamado Guarací a fim de caminhar sobre ela. Foi quando ele contemplou Jací, outra Nhande que surgiu de si mesma, formando a lua e assumundo a forma de uma mulher. A paixão os consumiu de imediato, e, num retumbate ato sexual desceram do céu até a Monte Areguá, a Montanha Sagrada, criando assim a terra, os oceanos, os rios, ar árvores e os animais.
Nhanderuvuçu então manifestou outra semente de seu poder, gerando a Tupã, por meio do qual criou os homens e as mulheres: Ñande Ru Paven e Ñande Sy, o grande Pai e a grande Mãe, ancestrais divinos dos Tupi, a primeira raça da Criação, que ensinaram-lhe a viver como civilização. Seus filhos foram Tumé Arandu, que descobriu o segredo da Profecia; Marangatú, o sábio líder guerreiro, e Japeusá, que descobriu a mentira e tornou-se o espírito das trapaças.
Da Criação estabelecida, outros Nhande surgiram. Sumé adquiriu sabedoria suprema, mas quase foi morto pelos homens ao tentar transmitir a eles seu conhecimento. O Anhangá gerou-se ao compreender o ciclo da existência (nascer-viver-morrer). Ceucí descobriu o fruto sagrado e tornando-se a Mãe Protetora dos Homens, porém gerando a Jurupari, o deus das leis e das sombras. Xandoré formou-se do ódio, tornando-se o vingador dos deuses. Rudá, o deus mensageiro, foi fruto do amor proibido entre Coaracy e Jaci, o sol e a lua que jamais podiam novamente se encontrar. Quanto a Tupã, este permaneceu como o zelador do mundo.
O Primeiro Lamento de Tupã
Os homens foram criados, e deram origem genealógica às suas Nações naquele passado imemorial. Suas trajetórias eram de tragédia e honra, sabedoria e bravura, tolice e ambição. Cada Nação teve seus mitos fundadores, seus heróis e seus algozes. Constituíram tribos tão numerosas quanto às sementes de todas as árvores. E não tardaram a guerrear.
Aqueles Heróis não eram homens ou mulheres comuns. Instintiva ou conscientemente, eles afloraram uma minúscula parte do Jasuka, “menor que a semente da jabuticaba”, ainda que o aña fosse “maior que mil oceanos”. O fizeram através de sua virtude, beleza, bravura, sabedoria ou talento, tornando-se exemplos para seus irmãos e filhos.
Mas, em meio a vastidão paradisíaca do Pindorá - nome original da terra - as Nações destilaram toda a sua brutalidade e egoísmo. Os guerreiros mais poderosos tornaram-se chefes tribais vaidosos, separando para si as mais belas mulheres e a melhor parte da caça. Os caçadores abusavam dos animais e até utilizavam o fogo para destruir o território alheio, despertando a fúria dos Kaapuãs e das Igupiaras. Mulheres eram tratadas como presentes para amigos, moeda de negociação entre aldeias e mimos colecionistas aos mais poderosos. A guerra não era pela sobrevivência ou honra, mas primeiro por ganância, depois por ódios seculares, quase milenares, entre aldeias e mesmo tribos inteiras.
O Dilúvio arrefeceu seus ânimos. Mas não foi o suficiente para chamar-lhes à consciência. As guerras eram cada vez mais sangrentas, acompanhadas agora por fluxos migratórios que deixavam rastros de destruição por onde passavam. Os espíritos, as matas e os rios se entristeceram, e sua tristeza chegou a Tupã.
Aquele foi seu Primeiro Lamento.
Aqueles Heróis não eram homens ou mulheres comuns. Instintiva ou conscientemente, eles afloraram uma minúscula parte do Jasuka, “menor que a semente da jabuticaba”, ainda que o aña fosse “maior que mil oceanos”. O fizeram através de sua virtude, beleza, bravura, sabedoria ou talento, tornando-se exemplos para seus irmãos e filhos.
Mas, em meio a vastidão paradisíaca do Pindorá - nome original da terra - as Nações destilaram toda a sua brutalidade e egoísmo. Os guerreiros mais poderosos tornaram-se chefes tribais vaidosos, separando para si as mais belas mulheres e a melhor parte da caça. Os caçadores abusavam dos animais e até utilizavam o fogo para destruir o território alheio, despertando a fúria dos Kaapuãs e das Igupiaras. Mulheres eram tratadas como presentes para amigos, moeda de negociação entre aldeias e mimos colecionistas aos mais poderosos. A guerra não era pela sobrevivência ou honra, mas primeiro por ganância, depois por ódios seculares, quase milenares, entre aldeias e mesmo tribos inteiras.
O Dilúvio arrefeceu seus ânimos. Mas não foi o suficiente para chamar-lhes à consciência. As guerras eram cada vez mais sangrentas, acompanhadas agora por fluxos migratórios que deixavam rastros de destruição por onde passavam. Os espíritos, as matas e os rios se entristeceram, e sua tristeza chegou a Tupã.
Aquele foi seu Primeiro Lamento.
Do Oceano, vieram bestas brancas e peludas, levemente semelhantes aos homens. Traziam com eles ferramentas incompreensíveis: canoas gigantes capazes de transportar aldeias inteiras; minérios indestrutíveis com os quais faziam suas armas; paus de ferro e madeira cujo pó negro fazia voar o fogo. Nos seus olhos havia uma cobiça jamais precedida, mesmo no mais ambicioso dos homens que em Pindorá viveu. Seu sangue tinha o poder de acumular as piores pestes, que eles transmitiam somente com um toque ou uma palavra. Era indiscutível o poder daquelas criaturas sujas, malcheirosas e estranhas, cuja fome insaciável pelo metal dourado assemelhava-se a de um possesso descontrolado. As Nações divergiram quanto aos invasores: alguns se aliaram a eles, outros fecharam-se em suas aldeias, matando-os e devorando-os antes de ouvir seus estranhos tratados de paz. Mas uma coisa ficou clara: a ambição atroz que os trouxe a terra.
Eram chamados de Kari ou Caraíba. Nós os chamamos de europeus.
As bestas foram um castigo de Tupã, que lhes abriu o Oceano para que achassem Pindorá. Existem Tradições mais detalhistas quanto a isto. Segundo alguns Pajés e anciões, Sumé se apercebeu da tristeza de Tupã, e revoltou-se ao ver todo o conhecimento que deu aos homens estar sendo usado com maldade. Sob a permissão de Tupã, ele deu aos homens de Além do Oceano o conhecimento para chegarem a Pindorá. Julgava que, diante de tal ameaça, as Nações se uniriam contra os invasores, aprendendo a viver em paz e harmonia, ensinado também tais valores aos estrangeiros.
De qualquer forma, o castigo que se seguiu foi terrível. Mas, para a surpresa de Sumé, os homens não se arrependeram de seus atos. Pelo contrário: uniram-se aos Kari! Juntando-se a eles, tomaram parte em suas imundícias. Aprenderam a roubar, a saquear. Viviam nas suas aldeias, em meio ao fedor e ao lixo, sendo contaminados pelo desejo do metal dourado. Outros resistiram, mas foram dizimados ou forçados a fugir. Os que sobreviveram, foram submetidos a uma Tradição cruel e jamais imaginada, que os invasores chamavam de escravidão. E aqueles que estavam longe do litoral pouco se importaram com o que acontecia, crentes que estavam a salvo nos confins da mata e próximos ao Monte Sagrado Areguá.
Pindorá estava se transformando. Sumé observava o novo mundo diante de si, aguardando o destino dos novos homens mestiços da Terra. Os Nhande e Encantados igualmente tentavam entender seu lugar diante deles. Enquanto isso, Tupã ainda esperava que eles se tornassem algo melhor e mais honrado, como os Heróis de outrora, fundadores das Nações.
Debaixo dos poderosos raios de sol, os novos homens construíam, sobre os destroços do que foi Pindorá, a Terra de Santa Cruz. E cada vez mais a ânfora de barro de Tupã enchia-se de amargura.
O Segundo Lamento de Tupã
Partindo do litoral, os homens criaram um novo mundo. O metal dourado, junto com o prateado e as demais pedras brilhantes, era o motor das aldeias brancas, fervilhantes em casas de pedra e fedor de esterco. Novas formas de plantio foram trazidas, estranhamente exaurindo a terra em troca de um único fruto: a cana. Mais homens e mulheres chegaram do oceano, mas estes tinham a pele negra como a noite, também criados pela Tradição sinistra da escravidão. Os Kari lhes tratavam com crueldade nunca dantes concebida em Pindorá.
Eras se passaram. As Nações foram destruídas na guerra e pela peste produzida no sangue dos Kari. As tribos que restaram uniram-se as bestas brancas, ou esconderam-se em quinhões de terra concedidos por alguns Kari que pareciam arrependidos de tudo o que seus ancestrais fizeram. Entretanto, estes Caraíba eram minoria: seus irmãos ainda desprezavam as Nações, sem compreendê-las, respeitá-las ou importar-se com elas.
A maldade não conhecia limites. Não havia honra na guerra. As plantas eram arrancadas e queimadas. Os animais eram caçados e esfolados sem compaixão ou temor aos Kaapuãs. As mulheres eram trancadas nas casas de pedra. A sabedoria dos antigos calou-se, enquanto os Pajés dos Kari achavam que, queimando aqueles que veneravam os Nhande, os purificariam a seu Deus.
As casas de pedra tornaram-se montanhas. Os rasgos de barro em meio a floresta, feitos para que as máquinas de rodas circulassem com o metal dourado, foram cobertas com uma pele cinza e fervilhante. Suas máquinas tornaram-se maiores e mais potentes, feitas agora não de madeira, mas de ferro. Algumas podiam voar, chegando ameaçadoramente próximo de Nhanderuvuçu. Os rios e as matas tornaram-se imundos, com o lixo produzidos pelas aldeias dos Kari, tanto quanto capaz de encher vales e soterrar montanhas.
O urro dos animais, a agonia das plantas, o choro das mulheres e o fedor dos rios subiram a Tupã como crimes inaceitáveis. Mais que isso, delitos incompreensíveis para aqueles que tinham recebido o paraíso.
Tupã entristeceu-se novamente. Mas nada falou. Nada fez. Somente retirou-se ao sol, para chorar.
E nunca, desde a criação, os Nhande foram tomados por tamanha incerteza. O que Nhanderuvuçu decretará?