domingo, 20 de agosto de 2017

Jaci: a deusa da Lua entre os homens brancos

Uma viúva atendeu a porta. Tocara a campainha outra mulher: alta, de olhos azuis claros, pele delicada e cabelos negros lisos que refletiam intensamente o brilho da lua cheia.

Intrigada ela mirou, com seus olhos marejados de lágrimas, a visita que havia chegado. Buscou uma forma de repreender a falta de educação daquela estranha, por bater em sua porta ao início da madrugada. As palavras, porém, fugiam de sua boca: parecia arrebatada pela presença daquela outra mulher, cujos brincos e colares eram prateados como o vestido justíssimo em seu corpo.

A viúva não esboçou reação quando a estranha mulher adentrou em seu belo casarão. Caminhava de forma majestosa e sem nenhum constrangimento pela sala: mobília nobre, talheres, lamparinas e castiçais de ouro, estufados escarlates. Um grande relógio de madeira marcava exatamente meia-noite. Um gramofone que tocava uma balada tristíssima.

- Você fará um favor para mim – disse a misteriosa visita, olhando para um quadro na parede onde figurava a dona do casarão, em lindíssimo vestido de noiva, e um homem de smoking igualmente requintado.

Nem na foto, nem pessoalmente, a viúva aparentava ter mais de quarenta anos.

- O-oque? – perguntou a dona do casarão, olhando embasbacada para aquela mulher. Estava com a mão na maçaneta e a porta ainda aberta, pela qual era possível ver o esplendor da Lua Cheia adentrar na sala.

- Você comprará um imóvel abandonado na Cidade de Serafins. Lá, construirá um hospício, contratando médicos e enfermeiros. Haverá um único quarto, e um único paciente.

A anfitriã tentava desesperadamente compreender por que não colocar aquela mulher para fora, logo depois de exigir saber quem era ela e por qual razão deveria obedecê-la. Mas a única coisa que conseguiu fazer foi indagar:

- Quem será este paciente?

A visitante virou-se à anfitriã:

- Apenas construa – respondeu – a pessoa se apresentará a você, voluntariamente.

A dona do casarão franzia a testa, meneando lentamente a cabeça.

- Devo então pagar pelo tratamento desta pessoa? – perguntou.

- Não. Ela ficará somente uma semana. Depois você deverá dar-lhe alta. Independente do que os médicos disserem.

A anfitriã apenas contemplou o andar imponente de sua visita enquanto ela ia em direção à porta. E, com a Lua cheia brilhando ao céu, olhando de forma blasé por cima do ombro, ela arrematou:

- Mais uma coisa. Você terá de inaugurar o hospício e receber seu paciente na primeira noite de Lua Nova, assim que concluir as obras. Tão logo o sol se ponha.

Ela desceu o lance de três escadas que levavam à porta do casarão. Atravessou o jardim, passou pelo pequeno portão e caminhou em direção à esquina, desaparecendo na noite.

Quanto a dona do casarão, ela ainda estava lá. De pé. Boquiaberta e segurando a maçaneta da porta escancarada.

...



Os dias se passaram e a viúva mal dormia. Varava as noites acordada, escutando músicas tristes no gramofone. Tentou até poderosos calmantes e chás para dormir. Nada.

Madrugada após madrugada, ela só fazia lembrar da estranha mulher de beleza exuberante que havia lhe visitado. Quem seria ela? Que pedido estranho era aquele? E porque não conseguia esquecer essa história toda?

Quase uma semana, e ela não suportou mais. Foi até uma corretora de imóveis, e começou a agilizar a compra de um imóvel para fazer o hospício. Na verdade, o mini hospício.

As semanas foram se passando conforme ela contratava pessoal especializado, pedia ajuda, leia sobre hospitais psiquiátricos em bibliotecas e a sobras andavam em Serafins.

Seu sono, contudo, foi melhorando sensivelmente neste período. E, para seu deleite, cada vez mais sonhava com o falecido marido. Sonhos vívidos, belos, nos quais ela dançava com ele, bebiam, comiam, riam. Era como se ele pudesse visita-la todas as noites, em seus sonhos.

Assim o tempo foi se passando. A obra quase pronta. Os sonhos, cada vez mais intensos.

A próxima Lua Nova se aproximava. Era a hora de finalmente dar um fim àquilo tudo e, quem sabe, desvendar tal mistério.

...

A noite se aproximava. Numa rua movimentada de Serafins, onde havia muitas lojas, botequins e cafés, estava o hospício: um prédio improvisado de quatro andares, na frente do qual estava a viúva, com sua tradicional elegância e discrição nos trajes negros, quatro enfermeiros uma secretária e um psiquiatra, todos contratados.

Todos intrigados, pois jamais entenderam a história da tal viúva. Mas, como o salário estava em dia...

Chovera muito durante o dia, e a rua estava molhada. O crepúsculo anunciava que o sol já se retirava no horizonte. As luzes da rua já estavam acesas, e a qualquer momento a Lua Nova reinaria no céu cujas nuvens da chuva já haviam se dissipado.

Todos viram então o carro vermelho se aproximando o belo Chevrolet vermelho 1915. 

A viúva respirou fundo e arregalou os olhos ao ver a mesma mulher que meses atrás havia lhe procurado numa noite de Lua Cheia para pedir que abrisse o hospício. Ela estava banco elevado da parte de trás do carro, entre dois belos homens de smoking branco e flores-de-maio adornando o bolso do paletó. Vestia um justíssimo vestido vermelho, e beijava a ambos os rapazes, mordiscando seus lábios e bebendo com eles às gargalhadas em taças de champanhe.

O carro parou.

Ela desceu. Claramente afetada pela bebida.

- Então? – perguntou, com a voz embriagada, a misteriosa mulher – onde fica meu quarto?

Ela entrou, acompanhando dos enfermeiros e do psiquiatra.

A porta ficou aberta. com a viúva estupefata, iluminada pelas lamparinas da rua e pela tênue Lua Nova no céu.



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