A feição do cacique era de horror. Boquiaberto, ele caminhava entre os mortos, seguido pelos guerreiros de sua tribo.
As mulheres da aldeia choravam copiosamente. Seus filhos e maridos jaziam, pelas ocas, junto as paredes do lado de dentro e do lado de fora, amontoados ao centro do povoado, jogados ali e ali.
Feridos violentamente com golpes de porretes e tacapes, o sangue era explicitamente exposto.
Pindarô, honorável cacique dos Uaiás, não tinha palavras para descrever tamanha atrocidade. Ainda tentando compreender o que se dera naquela aldeia, que dias antes o convidara para uma visita de paz entre as tribos, observou que um dos homens erguia a mão com enorme dificuldade, sinalizando ao sábio líder.
O cacique aproximou-se dele, pondo um joelho ao chão, segurando-lhe a mão e aproximando o ouvido de sua boca. O homem, num gigantesco esforço, disse então suas ultimas palavras:
- Ele disse vir em nome do senhor - tosse de sangue - Quando nos reunimos todos no centro da aldeia, eles nos atacou - gemido de agonia – ria enquanto nos matava...era poderoso demais.
Pindarô então levantou-se. Não podia conter nem o assombro nem o desespero em seu rosto, devido a tão detestável maldade.
Os céus então trovejaram. Trovejaram de uma forma que o cacique jamais ouvira.
E ele então percebeu que o mesmo horror que o arrebatara ao chegar na aldeia, também havia tomado aos deuses.
...
Pirarucu navegava uma grande canoa no grande Rio Tocantins. Gargalhava enquanto falava da forma fácil com que derrotou uma aldeia inteira de guerreiros, embora seus amigos e irmãos Uaiás estivessem incomodados.
- Ainda não entendemos porque fez aquilo – disse um deles.
- Não tem que entender...tem que sentir vontade de fazer e fazer! Essa é minha vida! É intensa, é vida de valente! – respondeu Pirarucu.
- Você é o mais poderoso de todos os guerreiros. Já derrotou tribos inteiras sozinho, e pós ao chão bestas terríveis e gigantescas – dizia outro de seus amigos, remando a canoa – não precisava provar isso.
Verdade – completou outro dos uaiás na canoa - e teu pai negociou a paz por semanas. Ficará furioso ao saber do que fez.
- Meu pai é complacente demais – respondeu Pirarucu – e ademais, o que fará ele?
- Não devias zombar assim de seu pai, Pirarucu – disse outro dos seus amigos.
- Por que não? – questionou o guerreiro – o que pode ele fazer?
Os seus amigos nada disseram, apenas olhavam a ele, assustados.
- Parem com esta tolice! – continuou Pirarucu de pé e gabando-se sobre a canoa – ele nada pode fazer. Ninguém, nem neste Mundo, nem no Outro, pode me deter no que eu quiser fazer!
Os demais remadores da canoa ficaram ainda mais preocupados com as palavras de Pirarucu, que não percebeu as nuvens fecharem-se de forma sobrenaturalmente veloz acima de si.
Seus amigos estavam apavorados por jamais terem visto tempo fechar-se assim. As trovoadas no céu, apocalípticas, foram o prenuncio do que estava por vir.
- Olhe para cima! - Disse um dos uaiás.
Pirarucu olhou, dando-se conta dos raios que despencavam pela floresta em redor. Um após o outro, sem descanso, sem intervalo, incendiando a mata às margens do rio.
- Temos que sair daqui antes que caia a tempestade – disse um dos remadores.
- Como? As margens estão em chamas! – retrucou outro.
Pirarucu então olhou para frente, e viu Iururaruaçu, a Yibiá das torrentes d’água, erguer-se imponente do rio na forma do busto exuberante de uma mulher cujo corpo e feições do rosto eram de águas revoltosas.
A Tempestade desabou, enquanto o guerreiro gargalhava, displicentemente:
- Lhe irritei, Tupã? – gritava ele, enquanto seus amigos, desesperados, pediam que o poderoso campeão parasse com o deboche.
Iururaruaçu então bateu com as duas mãos no rio, gerando uma onda gigantesca.
Os demais uaiás gritavam de medo enquanto Pirarucu ainda gargalhava, quando a onda lançou longe a canoa, arremessando-a próxima a duas serras e destruindo-a devido ao impacto com uma robusta árvore.
...
Pirarucu ergueu-se, com dificuldade, levantando-se dentre os destroços da canoa. Ao seu redor, o incêndio tomava toda a mata, alastrando-se para o pé das serras em redor. Somente a tempestade que desabava do céu era suficiente para arrefecer aquelas chamas.
- Isso foi tudo o que tinha? – perguntou ele, olhando para o céu.
Foi então que, recebendo a chuva em seu rosto, o guerreiro contemplou.
Descia do Céu um homem de majestoso cocar negro adornado com penas cinza de pássaros. As mesmas penas saiam de seus braços pela indumentária junto ao peito. Pinturas negras e azuis brilhantes, de tonalidade claramente onírica e sobrenatural, adornavam seus braços e pernas.
Seus olhos eram vazios, porém o semblante, cheio de ira. A tempestade descia com ele, que planava lenta e imponentemente entre as cerras.
Olhava fixamente para Pirarucu.
O homem ao chão mirava hereticamente ao deus diante de si. Trovões faziam um estrondo que podia ser ouvido dias e noites de distância, e agravavam a tensão entre eles.
- Xandoré, o dono dos trovões! – disse Pirarucu, enquanto mais relâmpagos alumiavam o céu em instantes de luz que faziam a noite semelhar-se ao meio-dia – Tupã mandou-lhe para que eu pedisse perdão?
Xandoré sorriu.
Não – respondeu ele, com voz cavernosa, enquanto erguia o dedo indicador às cinzas nuvens no céu – mandou-me aqui para fazer a ti o que fizeste àquela aldeia.
Pirarucu não teve tempo de dizer frases de efeito ou, típico de seu ego infantilóide, disparar uma bravata visando ter sempre a ultima palavra num embate. Como que obedecendo ao comando de Xandoré, um raio vindo da direção de onde seu dedo apontava caiu do céu, atingindo ao guerreiro, iluminando seu corpo e fazendo seus ossos aparecerem sob a pele.
Pirarucu caiu ao chão de bruços, atordoado com tamanho poder.
Xandoré desceu lentamente, tocando ao chão. Estava distante de Pirarucu, e caminhava em direção a ele rindo de forma sinistra.
- Não compreendo porque Tupã não o destruiu antes – dizia Xandoré ao caminhar – você é desprezível. E mais fraco do que imaginei...
Nunca, em nenhuma era, aquele Yibiá imaginou ver alguém que não Tupã surpreendê-lo por ser mais veloz. Assim, ficou estupefato quando, num piscar de olhos, Pirarucu virou-se e arremessou uma das lanças que os uaiás traziam consigo, que estava perto de si junto aos destroços da canoa.
Foi um arremesso tão poderoso que trespassaria três homens. Xandoré, contudo, segurou a lança antes que ela o atingisse, desfazendo-a em pó logo em seguida.
Xandoré novamente riu sua risada sinistra, principalmente ao ver Pirarucu erguendo-se e pegando o remo da canoa com as duas mãos, apontando-lhe a peça.
- Enlouqueceu com o relâmpago em sua cabeça? Ou está tão desesperado a ponto de achar que pode me derrotar com isso? – disse ele.
- Dispare novamente, e vai ver o que é loucura! – desafiou Pirarucu.
Xandoré sorriu, e apontou novamente o dedo, desta vez para Pirarucu. Um raio saiu de seu dedo, iluminando dramaticamente toda a planície sob a tempestade.
Porém, não atingiu a Pirarucu. Este apontava o remo em direção a Xandoré, aparando o raio, concentrando o poder, mas causando enorme dor ao guerreiro.
- Não é possível – pensava Xandoré com o dedo ainda apontado a descarregar o raio – nenhum homem poderia fazer isso! E ainda resistir a meu poder!
Pirarucu pôs um joelho ao chão. Já não suportava a dor enquanto Xandoré prosseguia a mirar-lhe o relâmpago.
O guerreiro então, num esforço gigantesco e aproveitando-se de sua posição com um joelho ao chão, levou a madeira sobre seu ombro direito e, com toda a sua força, arremessou-a contra Xandoré.
O inacreditável ataque atingiu ao alvo, gerando uma explosão de luz que pôde ser vista e ouvida lá da aldeia onde Pindarô estava.
...
As chamas já estavam apagadas. Sob a chuva, Pirarucu tentava recuperar as energias devido a tão épico feito. Botava sangue pela boca, e sua pele ficara áspera, enegrecida, rígida, estranha.
Naquele momento, era Pirarucu quem ria. Já imaginava as aldeias cantando sua vitória, e pensou em alguma bravata para gabar-se diante de Tupã por ter derrotado o poderoso Xandoré.
Foi, contudo, logo interrompido em seus pensamentos.
- Do que estás rindo Homem? – disse Xandoré, erguendo-se imponente de uma cratera que se formou com o impacto do ataque de Pirarucu. Não se via nele nenhuma marca de ferimento – achou que poderia derrotar ao poderoso Xandoré?
Pirarucu ficou furioso, mais ainda, frustrado. Xandoré novamente flutuou, agora acima da cratera que se formou com o impacto onde fora atingido, erguendo desta vez a mão e capturando nela um raio muito maior e estrondoso.
Pirarucu nada mais tinha à mão. Correu então em direção a mata próxima, a fim de fugir dos ataques furiosos de seu poderoso inimigo, que divertia-se ao disparar os raios como se fossem lanças. Estas geravam pequenas explosões ao chão, fazendo Pirarucu pular, saltar e cambalhotar para esquivar-se.
O guerreiro então tentou esconder-se sob os galhos das árvores mais longínquas, que não haviam sido queimadas.
Voando sobre elas, Xandoré ria ainda mais, sobretudo ao surpreender Pirarucu tomando fôlego junto a um tronco.
O deus dos trovões segurou novamente um raio, e um grito de horror se seguiu.
O disparo raio chegou a atravessar seu peito, atingindo em cheio ao coração do guerreiro, que tombou imediatamente.
Com um sorriso no rosto, Xandoré preparava-se para retornar ao céu. Mas, às suas costas, um suspiro desesperado foi emitido pela sua vítima.
- Peça perdão, homem! – ordenou Xandoré, ao ver que, surpreendentemente, o guerreiro não havia morrido.
Pirarucu tentava respirar. E, em meio a tentativa, riu, debochando da oferta.
Xandoré apenas meneava a cabeça em tom negativo.
O guerreiro então levantou-se, cambaleante. Corria, caia, rastejava...moveu-se como podia, chegando a aldeia onde seu pai estava.
Lá, todos os que viram sua pele estranha e o sangue que vertia fugiram horrorizados para a mata, com exceção de seu resignado pai.
Xandoré, que o seguia de longe voando pelos céus, viu ao guerreiro caído ao meio da aldeia. Farto daquela batalha, porém estupefato, desceu novamente, tocando ao chão e pegando o corpo do guerreiro.
O Yibiá então lançou Pirarucu ao mais profundo do rio, enquanto sua pele ficava ainda mais áspera e rígida.
Pindarô chorava o destino do filho. Ele, ainda vivo e agonizando, tornou-se um grande peixe. O Primeiro Pirarucu. Xandoré, por sua vez, retornou ao Céu, cessando a tempestade e refletindo sobre a força daquele guerreiro, somente proporcional a sua maldade e pequenez de caráter.
(Texto de Silva Pacheco - Lamento de Tupã)
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Xandoré, na belíssima arte de Natália Duarte |